sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Exotismo: sem saída, defesas de Bolsonaro e aliados fingem que a PF é o STF


Manifestações de Daniel Kuntz à PF; em uma delas, fala com a marca de seu escritório; em outra, usa o timbre da OAB-SP como se atuasse em favor de seu cliente, mas em nome da entidade. Nos dois casos, diz à PF que o STF não é o foro para cuidar do caso das joias. A Polícia não tem nada com issoImagem: Reprodução

Como não cansam de apontar meus detratores — sempre tão injustos, é claro! —, não sou advogado nem pertenço a uma outra categoria que já é de ordem reputacional: "jurista". Ah, "você é só um enxerido, metido a sabichão, não cursou direito e fica opinando". É tudo verdade.

Não obstante, sei reconhecer uma esquisitice quando diante de uma. Não entendo quase nada de zoologia, mas, já notei aqui, estou entre os que veem o ornitorrinco e a équidna como bichos fascinantes, dadas as, sei lá como chamar, "contradições" que carregam quando comparados a outros animais.

Tenho para mim que as respectivas defesas de Jair Bolsonaro, Michelle, Fábio Wajngarten e Marcelo Câmara resolveram apresentar uma espécie de petição, ou sei lá como chamar, que tem bico, mama, bota ovo e dispõe de pelos ao tentar justificar o silêncio de seus representados ao depor — ou não depor — à Polícia Federal nesta quinta.

Paulo da Cunha Bueno e Daniel Tesser trabalham para o casal; Eduardo Kuntz, para a outra dupla. Observem: como investigada ou testemunha, qualquer pessoa tem direito constitucional ao silêncio. Vocês sabem: ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo ou a confessar atos auto-incriminatórios — a menos que queira fazê-lo e que isso seja parte de uma estratégia da defesa. E assim tem de ser na democracia. Muita gente não se conforma, por exemplo, com o fato de o STF conceder habeas corpus para que convocados silenciem nas CPIs. Ainda é uma boca torta derivada do cachimbo alucinógeno do lava-jatismo. Delinquentes intelectuais e morais, então, transformaram garantias constitucionais próprias da democracia em supostos privilégios inaceitáveis.

Bolsonaro, Michelle, Wajngarten e o tal Câmara tinham o direito de permanecer caladinhos. Não precisavam falar nada. E, acrescentaria eu, não seria prudente mesmo, não é? Mauro Cid já acumula quase 24 horas de depoimentos. O risco de que tudo desandasse para o quarteto era imenso. Mais: a PF convocou depoimentos simultâneos, o que dificulta a combinação de versões. Como as eventuais revelações do tenente-coronel seguem em sigilo, o terreno estava minado.

A QUESTÃO DO FORO
Até aqui, nada a estranhar. O quarteto não falaria e pronto! Regra do jogo. Mas a coisa, penso eu, desandou. Os causídicos resolveram dizer à própria PF, nos autos do inquérito, que seus respectivos clientes não falariam porque não reconhecem o STF como foro competente para o trânsito da ação. Como é que é???

Pergunta óbvia: o que os delegados têm a ver com isso? Esperavam o quê? Que agarrassem o telefone e ligassem para Alexandre de Moraes? "Olhe, ministro, estão dizendo aqui que o senhor é um juiz incompetente para a causa".

Kuntz escreve o seguinte, referindo-se a Marcelo Câmara, argumentação idêntica à apresentada no caso de Wajngarten -- acrescida de outra restrição nesse caso, já chego lá:
"Ocorre que, ao longo dos últimos dias o presente procedimento -- em flagrante inobservância as regras de competência -- foi remetido ao Egrégio SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL e, a exemplo de todos os procedimentos em que o ex-Presidente da República é mencionado, passando a tramitar sob a relatoria do Eminente Ministro ALEXANDRE DE MORAES.

Contudo, como já restou expressamente consignado pela representante da PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA (PGR), aquela Suprema Corte não se mostra o órgão jurisdicional competente para conhecer da presente investigação.

Assim, o Peticionário destaca que está inteiramente à disposição para prestar os esclarecimentos adicionais, desde que o faça perante a autoridade com atribuição para tanto, como já o fez anteriormente neste mesmo procedimento."

É inusitado. É fabuloso. É, como gosto de escrever, estupefaciente. Conversei com alguns delegados da PF. Nunca lhes chegou à mão nada parecido. Um documento dessa natureza tem de ser apresentado à Justiça. Então um investigado poderia se dar ao luxo de escolher o foro, hipótese em que toparia "colaborar"? Mesmo quando o juiz é, de fato, incompetente, quem tem a decisão é a Justiça.

ISSO É UM TÁTICA?
A tática é magnificar a opinião da PGR, acrescida de uma entrevista de Augusto Aras -- que deve mesmo ter desistido de ser reconduzido... --, que alega a incompetência do STF para o caso das joias. O troço até pode movimentar os radicais nas redes sociais. Mas será um bom caminho? Ou estamos, como parece, no terreno já do desespero?

Uma coisa, entendo, é a defesa alegar a incompetência do foro, e isso é absolutamente legítimo, desde que o faça no âmbito da Justiça, não da PF; outra, distinta, é dizer: "Meu cliente só fala se a investigação estiver no lugar que consideramos correto". O ordenamento jurídico não permite que investigados, réus ou testemunhas escolham o juiz.

No caso de Wajngarten, Kuntz apelou ainda ao Artigo 7º, inciso XIX, da Lei Federal nº 8.906/1994, que garante ao convocado "recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional".

A disposição também está no Artigo 207 do Código de Processo Penal:
"Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho."

Huuummm... O ex-secretário de Comunicação de Bolsonaro e atual porta-voz é formado em direito, mas nunca foi um militante da profissão ou titular de uma das causas do chefe — à diferença de Frederick Wassef, por exemplo. De toda sorte, essa restrição — bem como as do Artigo 206 do CPP (sobre parentes em linha direta e cônjuges) valeria se Wajngarten e Michelle não fossem personagens do rolo que se investiga. E eles são. O subordinado se apresentar como representante do chefe não o protege necessariamente de depor.

Já vi investigado recorrer a advogado para se proteger; este buscar a proteção daquele, entendo, é também evento inédito.

MAIS EXOTISMO
Há um outro procedimento, digamos, heterodoxo: Kuntz foi contratado por Marcelo Câmara e por Wajngarten, certo? E é também Conselheiro da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP. Ao falar em nome do primeiro, entregou a justificativa do silêncio com a marca do seu escritório. Ao falar pelo segundo, preferiu usar o timbre "OAB-SP - Comissão de Direitos e Prerrogativas".

Era Kuntz ou era a OAB-SP quem apontava o suposto agravo aos direitos de Wajngarten, como se o ex-secretário nunca tivesse sido personagem do caso que se investiga e como se a intimação se devesse à contratação de sua banca pelo ex-casal presidencial. Nem Wassef pagou esse mico.

CAMINHANDO PARA O ENCERRAMENTO
Escolha cada um o caminho que achar melhor, não é? Mas me parece excepcionalidade demais para que esse troço todo dê certo para os clientes, o que não entristece, confessor. O futuro dirá. Ademais, tudo indica, Mauro Cid, o filho; o general Mauro Lourena Cid, o pai, e o tenente Osmar Crivelatti, também investigado, decidiram falar. Veremos se para esclarecer ou para confundir.

Se aos doutores parece razoável apelar à Polícia Federal para contestar o foro da investigação, o que posso dizer? Pode render algum barulho nas redes. Mas não creio que faça sucesso nos tribunais. Já imaginaram? Um delegado da PF chegaria para Moraes e diria na lata: "Caia fora, Xandão! Os investigados acham que você não deve ser o juiz".

E fica mesmo a minha dúvida aqui: um profissional pode, num mesmo caso, atuar como defensor privado e como conselheiro da OAB? Eu sei que conselheiros têm de trabalhar e de ter seus clientes. Mas, nesse caso, que fala nos autos? A pluralidade e a dimensão da entidade não se reduziriam ao tamanho do de uma causa, ainda que fosse boa? E, reconheçamos, não parece ser...

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