quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A banalidade do mal


A menina Heloísa dos Santos Silva, de três anos

Mais uma criança morre vítima de policiais treinados para guerra, e não para segurança pública

A morte da menina Heloísa dos Santos Silva, de três anos, após nove dias de luta pela vida em uma UTI, é o mais recente e trágico exemplo do despreparo policial que espalha vítimas inocentes em atuações desastrosas, sobretudo crianças, as mais vulneráveis dentre os vulneráveis. Heloísa não resistiu ao tiro de fuzil que lhe transpassou a cabeça e a coluna durante uma inimaginável abordagem policial ao veículo em que viajava, junto com outros quatro integrantes de sua família, de volta para casa depois do feriado de 7 de Setembro, na Baixada Fluminense (RJ).

O assombro diante de uma ação tão truculenta quanto incompetente aumenta por vir de policiais rodoviários federais, que têm como principal função, definida pela Constituição, fiscalizar o trânsito em vias federais. Ao contrário de outras forças policiais, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) não figurava, até um passado recente, no noticiário envolvendo assassinatos em operações de repressão. Muito menos de casos como esse, em que uma família tem o carro alvejado porque os policiais desconfiaram tratar-se de bandidos.

Caso mais típico de criminosa imperícia, impossível: o pai de Heloísa, ao volante, ao perceber a aproximação policial, liga a seta informando que vai parar no acostamento e recebe uma fuzilaria como resposta. Ao desespero dos policiais ao perceberem que acertaram a criança, com vários tiros, seguiram-se tentativas de distorcer os fatos. Primeiro, um dos policiais disse que reagiu porque ouviu barulho de tiros, o que testemunhas negam. Depois, a PRF informou que o carro em questão já havia sido dado como roubado, o que teria chamado a atenção dos policiais.

Nenhuma dessas explicações, contudo, justifica o descomunal despreparo policial e o perigo que isso representa para toda a sociedade, sendo as crianças, como já dissemos neste espaço, os alvos mais vulneráveis a tamanha brutalidade.

Há cinco anos, um dos primeiros atos do governo Bolsonaro foi ampliar as funções da PRF dando aos agentes também a competência de reprimir crimes, não só nas rodovias, como em quaisquer “áreas de interesse da União”. O que se viu, desde então, foi uma recorrência de ações funestas de uma polícia que não tinha esse histórico. Em um dos episódios mais violentos, em 2021, agentes da PRF participaram de uma ação que resultou na morte de 25 suspeitos de planejar um assalto a banco em Minas Gerais. Nenhum policial ficou ferido. “Só vagabundos reclamarão”, festejou na época o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do então presidente Jair Bolsonaro.

O caso Heloísa, porém, é um dos mais significativos do risco que representa uma guarda armada e desqualificada. Para piorar, surgem do Ministério Público Federal denúncias de que agentes da PRF estiveram no hospital onde a menina estava internada para intimidar a família, como revelou o Estadão.

Punição rigorosa para os agentes envolvidos no caso é o mínimo que se espera. Mas não apenas isso. É preciso que cada força policial receba treinamento eficaz em suas áreas de atuação. Não se pode tratar a segurança pública como se fosse uma guerra, e a morte de crianças, como se fossem baixas.

Editorial do Estadão

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