domingo, 24 de setembro de 2023

Cid vira alvo; todos soltam a mão de todos; simetria de bobos e falsa conta



Já lhes ocorreu uma outra hipótese, que sustento ser a mais provável? A PF já havia chegado muito mais longe do que o militar — sim, fiel escudeiro do bolsonarismo — havia imaginado que chegasse. Cid não foi emparedado pelas quatro linhas da prisão, mas pelos fatos. E, insisto, contaram menos as lambanças com joias e registros de vacina do que as evidências de que havia se envolvido com a tramoia golpista, dentro daquilo que lhe era dado fazer e um pouco mais: é sabido que o tenente-coronel tinha ambições de pensador político e de estrategista. Ele é até autor de um livro: "O Brasil no Oriente Médio".

Como o tempo há de mostrar, não tivesse escolhido a delação — e é evidente que, se comprovados os fatos, vai obter benefícios, que podem até mesmo se traduzir em perdão judicial, o que acho difícil —, passaria alguns bons anos na cadeia. Como o entendimento se dá no âmbito da Lei 12.850, que regula as delações e tem o nome de "Lei das Organizações Criminosas", é evidente que só será beneficiado, e já expliquei isso aqui, se apontar os coatores dos crimes cometidos e se ajudar a elucidar a arquitetura a que todos pertenciam — vale dizer: o funcionamento da tal organização.

Não foi o prazo — curto — de cadeia que levou Cid à delação, e sim o curto prazo em que a PF o encostou contra a parede com os fatos. Nessa circunstância, fazer o quê? Ele poderia, claro!, ter escolhido a liberdade de Bolsonaro à sua. É mesmo? Mas quem é esse líder e como ele se comportou quando tudo malogrou?

EXISTE SOLIDARIEDADE NA DIREITA?
A direita e a extrema direita não são conhecidas exatamente pelo espírito de renúncia e sacrifício em nome de uma causa. Sem entrar no mérito da justeza das acusações, observem que só Antônio Palocci, entre as estrelas do PT que caíram em desgraça, optou pela delação premiada -- e, ainda assim, insustentável. Fico cá a imaginar quantos benefícios a Lava Jato, aquela estrutura criminosa que dizia combater a corrupção, não ofereceu para que petistas graúdos apontassem o dedo contra Lula. E não aconteceu. E, da mesma sorte, sabiam todos que o então ex-presidente não trocaria a solidariedade aos seus pela liberdade.

Você pode detestar as prefigurações petistas, mas algo sempre uniu e une a cúpula do partido além dos interesses imediatos. Houve rompimentos e cisões na história da legenda, mas jamais se recorreu à tática do boi de piranha. De fato, ninguém solta a mão de ninguém. E Lula está de volta à Presidência, depois de todos os sortilégios, que incluíram 580 dias na cadeia, numa condenação sem provas.

Que exemplo deu o Coiso no exercício do poder? O que aconteceu com o fidelíssimo Gustavo Bebianno, demitido da Secretaria-Geral 49 dias depois da posse, a 18 de fevereiro de 2019? No dia 13 de junho daquele ano, foi a fez do general Santos Cruz ser enxotado, a palavra é essa, da Secretaria de Governo. O militar abraçou teses, incluindo a Lava Jato, que não são as minhas. Mas nunca foi um golpista ou um pistoleiro. É uma pessoa honrada. Nos dois casos, não houve uma só pessoa razoável que não tenha chegado à conclusão de que as duas demissões se davam por maus motivos. No caso do general, jamais alguém o viu o veria a ameaçar o processo político com um golpe.

E essa passou a ser a prática constante do governo. Não só os adversários eram tratados como inimigos a serem exterminados, como aliados caíam em desgraça a depender dos chiliques do candidato a tirano. Nos dias 29 e 30 de março de 2021, o capitão arruaceiro criou a maior crise militar desde o embate Ernesto Geisel-Sylvio Frota, demitindo o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e os então comandantes militares do Exército, Marinha e Aeronáutica: respectivamente, general Edson Leal Pujol, almirante Ilques Barbosa e brigadeiro Antônio Carlos Bermudes. A propósito: não se tem notícia de presidente da República que tenha, de forma tão obsessiva, submetido militares de alta patente, da ativa ou da reserva, a tamanhas humilhações.

Um líder, se me permitem o pleonasmo eloquente, lidera. É aquele que guia, que conduz. E, sendo assim, também é o que corre mais riscos e que não larga ninguém pelo caminho. Em certa medida, há algo de semelhante entre o verdadeiro espírito militar e o espírito militante dos petistas e das esquerdas. A propósito: "militar" e "militante" são praticamente a mesma palavra. A primeira deriva do adjetivo "militaris,e" (referente ao soldado); a segunda, de "militans, antis", particípio presente do verbo "milito": ser soldado, servir como soldado, combater, esforça-se.

Bolsonaro foi chutado do Exército por sua indisciplina; Cid era considerado um profissional exemplar e foi longe na carreira. Quiseram as escolhas pessoais, as afinidades eletivas e o destino que os dois se encontrassem. O tenente-coronel resolveu bater continência para os intentos criminosos do mau capitão. Constrangido pelas evidências que colheu a PF e dado o histórico daquele cara com os seus aliados, o que restava a Cid? O tal Altineu Côrtes, que só fala o que o mercador de aliados quer ouvir, agora ataca o ex-ajudante de ordens, evidenciando que este deveria, na verdade, ter optado pela delação premiada muito antes.

Se alguém tem vocação para trair, este é Jair Bolsonaro, não Mauro Cid.

USURPADOR
"Reinaldo, lá no alto, você chamou Bolsonaro de 'usurpador'. Ele não venceu a eleição?" Sim. Venceu. Apesar da campanha delinquente, tomou posse segundo as regras. Mas "exerceu indevidamente" a função; fez "uso de modo indevido" do que não lhe pertencia -- no caso, as instituições. E isso também define, segundo o dicionário, um "usurpador". Pesquisem, diga-se, o sentido do verbo "usurpo" em Latim.

PARA ENCERRAR, "BIS IN IDEM"
Existe um "bis in idem" ("duas vezes o mesmo") quando se condena alguém por -- ou se lhe imputam -- tentar abolir o estado de direito (Art. 359-L) do Código Penal e tentar o golpe de estado (359-M)? A Folha ouviu sete juristas, e seis disseram que sim. Eu poderia ouvir 20 que diriam que não, sem uma só divergência, e concluir ser essa uma opinião unânime. Aliás, há sete magistrados no STF que se opõem a essa tese.

É evidente que o assunto é controverso. Há um outro frequente: se alguém se beneficia de corrupção passiva e compra, sei lá, um carro com o dinheiro, será certamente condenado também por lavagem (pena, em si, pesadíssima). Convenham: que modo esse corrupto passivo teria de não responder também pelo segundo crime? Só se escondesse a grana debaixo do colchão.

Tanto no primeiro como no segundo casos, há opiniões distintas e honestas — e controvérsias dessa natureza existem em muitos outros tipos penais. O que não faz sentido é ouvir um grupo que concorda esmagadoramente com a tese que se quer provar, sob o pretexto de apenas informar.

"E você, Reinaldo, acha o quê?" Parece-me evidente que, tendo acontecido os atos criminosos depois da posse, houve tentativa de pôr fim ao estado de direito — e me parece desnecessário demonstrar por quê — e também de golpe: declaradamente, queriam depor o presidente para entronizar em seu lugar o candidato que havia sido derrotado, com uma variante: a instalação de um regime militar. Crimes autônomos, portanto.

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