sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Se Mauro Cid tivesse poupado Bolsonaro, fazer delação por quê? Vamos à lei


Patek Philippe com que o Reino do Bahrein presenteou o Brasil e que está sumido. Segundo a apuração da PF, Mauro Cid vendeu o relógio e repassou o dinheiro a BolsonaroImagem: Reprodução

O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, decidiu fazer delação. No programa "O É da Coisa", na BandNews FM, eu havia feito duas observações:

- ninguém presta depoimentos tão longos para uma simples confissão;
- o fato de seu advogado ter negado de pés juntos que esse seria o caminho é menos uma contradição do que o cumprimento da lei.

Antes que se apresente uma proposta, só cabe negar. Mesmo com a formalização, os termos seguirão em sigilo, conforme exige o Artigo 3ºB da Lei 12.850, a saber:
"Art. 3º-B. O recebimento da proposta para formalização de acordo de colaboração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documento que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial."

Assim, não saberemos tão cedo o que se dispõe a contar Mauro Cid, lembrando sempre que, conforme o Artigo 3ºA, delação não é prova. Cumpre transcrever:
"Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos. "

MAURO CID E BOLSONARO
A questão que está em todas as cabeças é uma só: "Será que o candidato a delator complicará a vida de Bolsonaro se sua colaboração for aceita?" Convenham: a questão nem faz sentido. Afinal, o militar havia confessado parte do que a Polícia Federal já havia apurado.

A Lei 12.850 estabelece alguns pressupostos para que alguém receba os benefícios da colaboração. Comecemos, pois, por estes, que está no caput do Artigo 4º:
Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

Tal artigo especifica em cinco incisos o que a lei compreende por uma colaboração digna de prêmio. Leiam:
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;

IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;

V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada."

É evidente que só há duas formas de Cid ambicionar um benefício com a delação, ou nada feito:
1: identificar os coautores e partícipes da organização criminosa;

2: a revelação da estrutura hierárquica da dita-cuja.

A propósito: o nome da 12.850 é justamente "Lei das Organizações Criminosas". A menos que houvesse alguém acima do próprio Bolsonaro — Deus não vale! — que tomasse as decisões, não há como ser aceita uma delação, com seus eventuais benefícios, sem que o ex-presidente se encalacre.

O prêmio pode ser grande. O Parágrafo 2º desse Artigo 4º volta a se referir ao perdão judicial. Eis aqui:
"§ 2º Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). "

O Artigo 28 do CPP, citado acima, trata justamente da possibilidade de arquivamento do inquérito, e o colaborador sai livre como as flores. É difícil, mas pode acontecer.

A lei, obviamente, não permite que o líder da organização criminosa faça delação e prevê que os benefícios maiores caibam a quem primeiro se dispuser a colaborar.

Dadas as circunstâncias, fosse mesmo verdade que Cid nem tocou no nome de Bolsonaro, não haveria por que falar em delação.

Na quarta, Cid e Cezar Bitencourt, seu advogado, estiveram no gabinete de Alexandre de Moraes e foram recebidos pelo juiz-auxiliar Marco Antônio Vargas. Entregaram o termo de intenção da delação, e a defesa agora pede a liberdade provisória do ex-ajudante de ordens.

O clima nas hostes bolsonaristas mistura consternação e pânico. Homologada uma delação, é impossível imaginar os passos seguintes da polícia porque se ignoram os elementos apresentados pelo colaborador e que vão suscitar a produção das provas. Não raro, acaba sendo um convite para que outros também delatem.

Revejam ali os termos da lei. É claro que Bolsonaro pode estar numa fria. Das duas uma: ou Cid não tocou no nome do "capitão", como chegou a dizer seu advogado — e prêmio não haverá —, ou contou como funcionava a coisa, nos termos de uma lei que é chamada "das Organizações Criminosas".

Tic-tac, tic-tac, tic-tac... Em algum lugar do mundo bate o Patek Philippe com que o reino do Bahrein presenteou o Brasil. Uma lindeza de se ver. "Mas como dói", escreveu o poeta. Ao menos em alguns...

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