sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Pacote eleitoral realça vocação da política para o apatifamento



A língua portuguesa é tão rica que certas palavras permanecem escondidas nos fundões dos dicionários. Uma delas é "apatifar". Segundo o Aurélio, significa tornar desprezível, aviltar, envilecer. E não são apenas as pessoas que se apatifam. Uma democracia também pode se apatifar, ou ser apatifada. Impossível olhar para a Câmara dos Deputados sem ser assaltado pela sensação de estar testemunhando um acentuado processo de decomposição.

Sob a batuta de Arthur Lira, a esquerda, a direita e o centrão apressam a análise de um pacote de medidas político-eleitorais. O embrulho inclui uma minirreforma que piora uma legislação já bem permissiva. O texto base foi aprovado na noite passada. Está pronta para sair do forno emenda constitucional que concede a mais generosa, ampla e desavergonhada anistia da história. Cancela multas da Justiça Eleitoral aos partidos e esmigalha o sistema de controle do gasto de verbas públicas em eleições.

Há um pouco de tudo no embrulho da Câmara, exceto probidade. Flexibilizam-se as cotas para candidaturas de negros e mulheres, as leis de Improbidade e da Ficha Limpa são passadas a sujo, reduz-se a transparência, escancaram-se as portas para a compra de votos por meio da subcontratação de cabos eleitorais e um interminável etcétera.

Reunindo velhas ideias com mumunhas novas, a Câmara encontrou uma forma sui generis de acabar com a criminalização da política. Em vez de deter os criminosos, elimina-se o crime. O espetáculo da desfaçatez antecede a definição do valor do fundão eleitoral de 2024. Cogita-se reservar para o financiamento da eleição municipal R$ 5,7 bilhões em verbas públicas.

Há mais de um século, o historiador Capistrano de Abreu propôs uma revisão constitucional revolucionária. A Constituição de Capistrano teria apenas dois artigos: "Artigo 1º - Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Artigo 2º - Revogam-se as disposições em contrário". Quem olha para a Câmara compreende por que o espírito da proposta de Capistrano não teve futuro. A política brasileira tem vocação para o apatifamento.

Nenhum comentário: