quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Distorções no orçamento municipal



Estudo confirma engessamento orçamentário dos municípios, incapazes de investir em infraestrutura para lidar com aumento da população urbana. Passa da hora de rever essa distorção

Um levantamento feito pelo Observatório de Informações Municipais (OIM), publicado pelo jornal Valor há poucos dias, mostra que, nos últimos 50 anos, os investimentos das prefeituras em serviços urbanos e construção e manutenção de infraestrutura despencaram ao mesmo tempo que aumentaram substancialmente os gastos com saúde e educação.

Segundo o OIM, as despesas dos municípios com serviços urbanos, entre 1972 e 2022, caíram de 27,41% das despesas totais para 9,89%. Por outro lado, os gastos com saúde saltaram de 5,67% para 25,49% no mesmo período, em média. Já na área de educação, as despesas praticamente dobraram, saltando de 14,82% para 26,76%.

Ou seja, os recursos dos municípios, já escassos, são ainda mais comprimidos por obrigações constitucionais que nem sempre dialogam com a realidade e as necessidades de cada cidade. Como bem lembrou um especialista em urbanismo citado pelo Valor, as verbas para a saúde serão sempre insuficientes se não houver investimentos, por exemplo, em saneamento básico.

A questão de fundo é que a Constituição de 1988 é municipalista. Sob os auspícios da ordem liberal democrática restaurada havia pouco tempo, a Assembleia Constituinte entendeu ser o caso de conferir aos municípios maior protagonismo no federalismo brasileiro. E isso se traduziu, basicamente, num novo modelo de distribuição dos recursos advindos da arrecadação e, sobretudo, numa redefinição de responsabilidades pela concepção e implementação de políticas públicas.

No papel, tudo parecia perfeito. Afinal, como dizia o ex-governador de São Paulo André Franco Montoro, um dos mais notáveis municipalistas brasileiros, “ninguém vive na União ou no Estado, as pessoas vivem no município”. Porém, transcorridos quase 35 anos de vigência da “Constituição Cidadã”, e a despeito das boas intenções dos constituintes originários, aquele arranjo constitucional que alçou os municípios a um outro patamar de autonomia na organização política da República produziu uma anomalia que, em larga medida, tem afetado justamente aqueles que haveriam de ser os grandes beneficiários do novo pacto federativo: os próprios munícipes.

Ao aumento substancial das atribuições dos municípios – e, portanto, de sua parcela de contribuição para o bem-estar geral dos cidadãos – não correspondeu um incremento de receitas à altura dessas novas responsabilidades. Para piorar o quadro, a descentralização política consagrada pela Constituição de 1988 foi regulamentada “de maneira pouco organizada” desde a promulgação da Lei Maior, como bem notaram os pesquisadores Miguel Lago e Francisco Gaetani em A construção de um Estado para o Século XXI (Ed. Cobogó, 2022). Isso gerou uma espécie de limbo político-administrativo que não raro atrapalha, quando não impede, a formulação e a execução de políticas públicas aptas a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. Ao fim e ao cabo, não é outra a principal missão de qualquer governo, nas três esferas da administração.

Menos do que propriamente conflitos de competência, às vezes a mera dúvida sobre qual ente federativo é responsável por determinada prestação de serviço público já basta para que os cidadãos simplesmente não tenham acesso ao serviço ou este seja prestado com qualidade aquém da necessária – e sem que haja um responsável claramente identificável a quem recorrer.

A um primeiro olhar, parece paradoxal a ideia de que investir mais em áreas tão vitais, literalmente, para os cidadãos, como saúde e educação, possa ser algo ruim. Contudo, o engessamento dos orçamentos municipais, somado à confusão criada por aquele limbo político-administrativo, ajuda a entender por que a grande maioria dos munícipes nem é bem atendida por serviços de saúde e educação nem vive em cidades bem organizadas do ponto de vista urbanístico. Passa da hora de um honesto debate nacional sobre essas distorções, não para rever postulados da Lei Maior, mas, antes, para fazê-los valer em sua plenitude.

Editorial do Estadão

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