Nesta semana, o Brasil comemorou o Dia do Índio. Para a maioria da população, este é um dia de folclore. Mas, na verdade, é um momento de reflexão sobre o holocausto que cometemos contra as nações indígenas. A história do Brasil é, em parte, a história de um longo holocausto que ainda não terminou.
De 4 a 6 milhões de indígenas que habitavam o Brasil e viviam em harmonia com a natureza, hoje apenas 817 mil sobrevivem (Censo de 2010). Eles foram sendo mortos pelo excesso de trabalho, pela fome e mesmo pela caça que os tratava como animais. E hoje a maior parte vive na mais absoluta miséria, sem terras e sem uma política pública eficiente por parte dos governos.
Pode ter sido um holocausto mais lento, não menos doloroso e imoral do que a brutalidade cometida pelos nazistas contra o povo judeu, ao considerarmos toda a dimensão da tragédia indígena.
E no nosso caso, o holocausto continua sendo feito por represas, estradas e garimpos, que matam índios, provocando alcoolismo e suicídio, e destruição de seus habitats e etnias.
Mas esse não foi nosso único holocausto. Ao longo de 300 anos, desde quando chegaram aqui os primeiros escravos africanos, até 1888, quando foi proclamada a Abolição da Escravatura, pelo menos quatro milhões de seres humanos foram arrancados da África e trazidos para o Brasil, onde foram sacrificados no trabalho forçado, tratados como mercadoria, sem direito aos filhos, tratados como mobiliários ou ferramentas.
Considerando também aqueles que aqui nasceram e continuaram escravos, podemos estimar em dezenas de milhões os negros tratados como animais na vida, vítimas de um maldito holocausto brasileiro.
Mas, se há 124 anos este holocausto terminou, a face mais brutal da escravidão explícita dura até hoje. Seus descendentes enfrentam a exclusão social que já não pode ser chamada de holocausto, mas não deixa de ser um crime social, em um país onde as boas escolas são dos brancos e as prisões para os negros.
Porém, este não é o último dos nossos holocaustos. A cada ano, mais de 42 mil brasileiros morrem por acidentes de trânsito e outros 50 mil são assassinados.
Embora não se possa ter um responsável direto como foram os nazistas, os exploradores de índios e os escravocratas dos negros podem ser responsabilizados pelo sistema social e econômico que provoca esse holocausto.
O responsável maior é o sistema consumista, desigual, com prioridades imorais, com pessoas por trás tomando decisões, como havia na Alemanha nazista.
Todos os holocaustos da história, inclusive aquele dos nazistas contra os judeus, são tolerados pelas leis vigentes, e só viram crimes contra a humanidade quando deixam de ser contemporâneos e passam a serem fatos analisados pela história.
Por isso, o Brasil não vê como um holocausto a condenação de 250 mil meninas que vivem na prostituição, sacrificando não apenas a dignidade e o futuro delas, mas também a vida.
Nem considera holocausto o crime contra os milhões de meninos e meninas excluídos de uma educação decente com qualidade, condenados a sobreviverem na miséria e na exclusão por falta dos instrumentos necessários para entenderem e enfrentarem o mundo moderno.
A cada minuto de ano letivo, 60 crianças abandonam a escola apenas por serem pobres, são descartadas à margem da vida digna, como os escravos mortos eram jogados para fora dos navios negreiros e os judeus eram jogados nas câmaras de gás.
Por sua ausência ou por sua ineficiência, a Escola brasileira é um crematório de cérebros. Funciona como um forno, cremando perseguidos e excluídos. Quem observa este maldito fato na perspectiva de hoje, o vê apenas como uma fatalidade, talvez lamentável, mas sem a percepção do holocausto contra as crianças e o futuro delas.
Portugueses e brasileiros da colonização não viam o holocausto que era feito ao lado deles contra os índios, ou aquele feito contra os escravos. Para eles, índios e escravos não tinham alma, para os brasileiros de hoje, crianças pobres não têm direito à escola igual àquelas pagas pelos pais que podem pagar.
O Dia do Índio pode ser um dia de simples lembrança de que temos ainda sobreviventes indígenas, mas pode ser também um dia de memória dos holocaustos antigos e dos dias de hoje da sociedade brasileira, de cada hora e minuto nos tempos atuais: o Dia do Índio é o Dia dos Nossos Holocaustos.
Cristovam Buarque é professor da UnB e senador pelo PDT-DF.
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