O Globo
Vale-tudo ideológico (Editorial)
Entidades com longa história de vigilância sobre governos, como a UNE, se
mantêm em silêncio diante da enxurrada de casos de corrupção ocorridos desde
2003, quando Lula assumiu o primeiro mandato.
Dois anos depois estourou o mensalão, em que há crimes de lavagem de dinheiro
e também de desvio de recursos públicos, entre outros. Silêncio total.
E assim tem sido até agora, na sucessão de escândalos nestes quase sete meses
de governo Dilma. Sequer apoio à presidente, petista, é dado.
Forja-se, agora, uma curiosa desculpa para essa imobilização: tudo seria
fruto do “udenismo” da oposição e, claro, da imprensa independente e
profissional. Quer-se, com isso, importar das décadas de 50 e 60 uma luta
ideológica entre a UDN de Carlos Lacerda e o PTB de Getúlio, Jango e Brizola, um
anacronismo.
Além de se considerar que havia mesmo corrupção no Palácio do Catete daqueles
tempos, hoje a conjuntura é muito diferente. Não há qualquer campanha ideológica
orquestrada contra qualquer governo, apenas — o que não é pouco — fatos
concretos, substantivos, de malfeitos na esfera do poder.
O mensalão, de tão substantivo, virou peça de acusação do Ministério Público
Federal aceita pelo Supremo, que se prepara para julgar o histórico processo em
2012, salvo chicanas advocatícias.
Nele estão figuras estreladas do PT, como José Dirceu, Genoino, o tesoureiro
Delúbio Soares — recebido de volta pelo partido sem pudores —, João Paulo Cunha
etc. Talvez isto iniba a UNE, sindicatos e movimentos ditos sociais, também
dependentes de verbas públicas. Fica evidente que, na ótica de algumas
organizações, há corrupções e corrupções.
Se o escândalo envolve o governo Collor de Mello, a postura é uma; caso
atinja o PT, o silêncio impera.
(Não se deve mesmo esquecer que existe um
mensalão tucano mineiro no Supremo, à frente dele o ex-governador Eduardo
Azeredo).Não há como ressuscitar no século XXI os embates ideológicos do início
da metade do século passado.
Não está em questão a tomada do poder, mas a lisura no manejo do dinheiro do
contribuinte, o que não pode ser considerado desimportante. Mas, em nome da
manutenção do poder, faz-se vista grossa a escabrosos assaltos ao Tesouro,
cometidos à vista de todos.
Há o perigo de UNE, MST e entidades sindicais reeditarem algo também tão
carcomido quanto o embate de “udenismo” versus “trabalhismo/getulismo”: o “rouba
mas faz” do populismo de Adhemar de Barros da política paulista daqueles mesmos
tempos. Uma ideologia distorcida que se manteve na vida pública de São Paulo até
Paulo Maluf.
Recoloca-se a também antiga questão dos “fins que justificam os meios”,
cacoete de movimentos de esquerda que terminou desaguando no mensalão e em
outras impropriedades em certas empresas estatais.
O fato de a UNE fazer um congresso patrocinado pelo dinheiro público é apenas
um aspecto, seja uma caneta petista ou tucana que libere as verbas. Há mesmo
eventos de organizações da sociedade que precisam e devem contar com apoio do
poder público.
O ponto é outro: o que UNE, sindicatos, MST e similares dão em troca do
acesso ao dinheiro do contribuinte. O silêncio diante da enxurrada de casos de
desvio de dinheiro do Tesouro é grave. Inevitável que se faça ligação entre uma
coisa e outra.
Há — ou deveria haver — preceitos éticos que pairam sobre partidos e
ideologias, bem como o compromisso inegociável com eles. Se não, a vida pública
se resume a um vale-tudo de quinta categoria, sem aprimorar a sociedade.
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