Demétrio Magnoli, O Globo
‘Num país onde mais de 50 mil pessoas são mortas por ano, como é possível essa histeria com 40 garotos?”, indagou a socióloga Esther Solano, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), segundo reportagem de Lourival Sant’Anna publicada em “O Estado de S. Paulo” (1/6).
A indagação refere-se aos black blocs e revela as evidentes dificuldades da professora com o raciocínio lógico, que são multiplicadas por uma dramática carência de referências históricas. Contudo, atrás dela, é possível identificar os contornos de um fenômeno relevante.
Os “40 garotos” não estão sós: são uma superfície emersa, ainda que mascarada, da profunda crise na qual se debate a esquerda brasileira.
A violência que se espraia, oriunda de bandidos ou policiais-bandidos, obviamente não pode servir como justificativa para a colonização de manifestações políticas por grupos dedicados à violência. No plano lógico, há mais: a violência dos “40 garotos” não é uma resposta à criminalidade, mas uma apropriação política dos métodos dos criminosos.
A declaração de um dos líderes dos black blocs, reproduzida na reportagem, evidencia uma deriva perigosa, mas bastante previsível:
“Não temos aliança nem somos contra o Primeiro Comando da Capital (PCC). Só que eles têm poder de fogo muito maior que o Movimento Passe Livre (MPL). Eles fazem por lucro e a gente, contra o sistema.” Solano não vê nisso nenhum problema — e o problema é justamente esse.
Os “40 garotos” não são um raio no céu claro — nem, muito menos, como sugeriram alguns intelectuais hipnotizados pela política da violência, um fruto natural da vida nas “periferias”. As táticas que utilizam, a estética que os define e as ideias que os mobilizam têm significados inteligíveis. Como tantos outros intelectuais-militantes, Solano provavelmente sabe decifrá-los, mas prefere ocultá-los.
A estética tem importância. Os “40 garotos” cobrem o rosto não apenas para praticar atos criminosos no anonimato, mas, essencialmente, com a finalidade de traçar uma fronteira entre eles mesmos e os demais manifestantes. Os black blocs enxergam a si próprios como uma vanguarda, um modelo e um exemplo. Eles sabem o que os outros (ainda) não sabem.
“Estamos mostrando na rua a tática, e queremos que as pessoas se apropriem”, explicou uma black bloc, estudante de Ciências Sociais. Nesse sentido preciso (e só nesse!), os black blocs inscrevem-se na correnteza histórica dos grupos terroristas e das organizações de guerrilha urbana.
As táticas têm importância. Os “40 garotos” atacam policiais, depredam e vandalizam com a finalidade de provocar a reação repressiva mais violenta possível. No cenário ideal, policiais despreparados e assustados devem investir contra manifestantes pacíficos, ferindo-os ou (sonho dourado!) matando-os.
Os black blocs são descendentes das organizações de “ação direta” que emergiram na Alemanha e na Itália entre as décadas de 1970 e 1980. “A manifestação não pode ser pacífica, sendo que é resposta à repressão estatal e capitalista”, teorizou um dos “40 garotos”. Os black blocs almejam promover o caos para comprovar a tese política que abraçaram.
As ideias têm importância. Os “40 garotos” inspiram-se no filósofo Herbert Marcuse, que interpretava as democracias representativas como regimes autoritários disfarçados sob uma película irrelevante de falsas liberdades. A rejeição marcusiana às instituições da “falsa democracia” funcionou como mola das organizações de “ação direta” que emergiram no rescaldo do Maio de 1968 na Europa.
Dos destroços da “ação direta”, surgiram grupos terroristas como o Baader-Meinhof e as Brigadas Vermelhas. Os ancestrais dos black blocs eram “garotos” alemães e italianos cujas vidas — e as de tantos outros da mesma geração não envolvidos em atos de terror — foram tragadas no caldo letal das ideias formuladas por intelectuais-militantes.
A professora da Unifesp só tem relevância como sintoma. Na hora da repressão, ela estará defendendo sua tese acadêmica ultrarradical numa sala climatizada, entre pares ideológicos. Mas as bobagens rasas que diz e escreve descortinam um panorama trágico: uma parte da esquerda brasileira não aprendeu nada e ensaia reproduzir experiências catastróficas bem conhecidas.
Infelizmente, os “40 garotos” não estão sós. A conversão do PT em “partido da ordem” — e, em seguida, da “velha ordem” — abriu um vazio político que começa a ser preenchido pelo discurso e pela prática da “contraviolência”.
O MPL jamais condenou as intervenções dos black blocs nas passeatas que convocaram. Setores do PSOL piscaram um olho para eles, como se viu tanto na greve dos professores municipais quanto na ocupação da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
“Um país que naturaliza tanto a sua violência não tolera ver a violência na Avenida Paulista”, disse Solano ao repórter. “É legítimo quebrar banco. Quantas pessoas um banco quebra por dia?”, explicou o líder black bloc, que também justificou a depredação de bens públicos:
“O imposto já é roubado. Dizer que o dinheiro vai sair do nosso bolso é mentira, porque já saiu. Alguém tem saúde digna? Então não reclame de vandalismo.”
Marcuse depositava suas esperanças revolucionárias no que os marxistas caracterizaram como “lumpen-proletariado”, isto é, a camada marginalizada de desempregados crônicos, jovens revoltados, pequenos criminosos, vigaristas e desordeiros dos centros urbanos. Seguindo a trilha do mestre, os intelectuais-black blocs enxergam nos “40 garotos” a centelha de uma grande fogueira purificadora.
De fato, os “40 garotos” expulsaram as pessoas comuns das ruas, transformando-as em cenários de pequenas guerras urbanas. O espectro da violência serve, hoje, como argumento para a militarização das cidades-sede da Copa. Solano já pode comemorar: os seus “garotos” estão “provando” a tese de que democracia é igual a ditadura.
Demétrio Magnoli é sociólogo.
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