domingo, 1 de junho de 2014

Um juiz para a História


Ruy Fabiano
Jamais o anúncio de uma aposentadoria no Supremo Tribunal Federal, mesmo de alguém que ocupava sua presidência, foi motivo de tanto espanto e comentários quanto a do ministro Joaquim Barbosa, anunciada esta semana.

Isso dá a dimensão que sua figura pública adquiriu, circunstância rara entre os integrantes da Suprema Corte, em regra conhecidos apenas nos meios acadêmicos e jurídicos.

Contrariou colegas, advogados, políticos, militantes; sobretudo, contrariou os padrões vigentes no meio jurídico nacional, onde a graduação política do réu exerce influência decisiva na condução (e desfecho) de seu julgamento.

Não é casual que o Mensalão tenha sido um divisor de águas na história política e jurídica do país. E o Mensalão definitivamente remete à figura de seu relator, o ministro Joaquim Barbosa.

O fato histórico de ter levado a Suprema Corte, por força de seus argumentos e das provas que soube articular, a condenar personagens da elite política e econômica do país – um país cujas tradições as absolveriam –, confere-lhe méritos bem acima de seus proclamados defeitos, que evidentemente existem.

Fala-se, por exemplo, de seu temperamento mercurial: pois foi graças a ele, com todas as suas impropriedades, que convenceu a opinião pública de que o monstro da impunidade estava sendo ali enfrentado. E a opinião pública correspondeu-lhe plenamente ao esforço e audácia, que lhe custaram não poucos contratempos.

A militância partidária o responsabiliza pela condenação de seus líderes, esquecida de que não votou só. E ainda: de que a votação não se baseou em abstrações. Provas havia em abundância, e o mérito de Barbosa foi a de ter sabido enunciá-las e relacioná-las com engenho, coragem e coerência, convencendo a maioria de seus pares, homens de grande cultura jurídica.

As demonstrações de decepção por parte da alta cúpula do PT – sobretudo do ex-presidente Lula -, que esperava subserviência de Barbosa em troca da nomeação, dizem bem da mentalidade tosca e segregacionista ainda vigente no país.

O partido que postulava vocalizar o povo agiu como um clássico senhor de engenho.

João Paulo Cunha, um dos condenados, disse que Barbosa deveria ser grato por ter sido o primeiro negro nomeado para a Suprema Corte do país. Outros, inclusive Lula, disseram coisas na mesma linha de raciocínio. São colocações perfeitamente racistas, que Barbosa soube refutar com sua conduta.

Se o que motivou sua nomeação foi a cor da pele, e a exploração política dela decorrente – e disso não há dúvidas, pois foi mais que confessado -, ele prestou inestimável serviço à causa da luta antirracista, recusando o papel de subserviência que lhe cabia. Respondeu com a exibição de independência, lastreada em sólida cultura jurídica, à altura dos maiorais da Corte. Fez jus aos requisitos constitucionais, ao contrário de outros que ali estão.

Barbosa entra para a História, não obstante sua curta permanência no STF. Outros ali ficarão por mais de duas décadas e deles ficará a memória de terem sido antagonistas num julgamento de peso simbólico incomparável.

Leva consigo o peso da causa que personificou – a quebra da impunidade, numa Justiça jejuna em condenações políticas -, com todos os excessos que protagonizou, sobretudo as desnecessárias picuinhas na execução das penas.

Como quem cumpre uma missão, da qual nem ele parece ter a exata dimensão histórica, deixa atrás de si um rastro de espanto e perplexidade, palavra-síntese de sua passagem-relâmpago pelo Judiciário brasileiro.

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