segunda-feira, 5 de junho de 2023

Na mira da PF, Lira vai se lembrar de Maquiavel e de "O Pequeno Príncipe"?



"Quem Deus perdere vult, prius dementat". É um ditado latino. Aquele a quem Deus quer perder — leia-se: DESTRUIR —, primeiro tira-lhe o juízo. Há variantes no plural: "Quos volunt di perdere, prius dementant". Ou com Jupiter em lugar de "Deus". Veio-me à mente o adágio ao pensar na situação de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara: tanto em razão da faca que encostou no pescoço do governo por ocasião da votação da PEC dos Ministérios como da reação, que não parece ter sido das mais mesuradas, ao saber que aliados seus haviam sido alvos de uma operação da PF na quinta.

Lira deveria pensar na frase latina e rememorar o destino de Eduardo Cunha, o presidente da Câmara que deu o passo inicial do impeachment de Dilma e que também caiu em desgraça. É a velha história: quando se opera no risco, a altura a que se chega aumenta o estrago em caso de queda.

LEMBRANDO...
O que é mesmo caso dos kits de robótica? Rememoro para depois retornar ao leito. Trata-se daquela, tudo indica, roubalheira havida em 2022 na compra do equipamento para distribuir em escolas, especialmente de Alagoas.

Falei em "roubalheira?" Talvez haja outro nome, que desconheço, para a lambança. Uma empresa, a Megalic, de Maceió, comprou os tais kits por R$ 2,7 mil a unidade e os revendeu ao governo federal por R$ 14 mil. Atenção! Esses valores não são mera especulação, mas fatos documentados.

A Folha revelou, então, por exemplo, que sete cidades alagoanas receberam R$ 26 milhões em 2022 para esse fim. A propósito: a Controladoria Geral da União demonstra que é possível adquirir no mercado material parecido por menos de R$ 600 — abaixo, pois, até mesmo daqueles R$ 2,7 mil pelos quais foram adquiridos pela Megalic.

Os donos dessa empresa são Roberta Lins Costa Melo e Edmundo Catunda, pai do vereador de Maceió João Catunda, aliado do presidente da Câmara. Eles foram presos na quinta. A propósito: a operação deveria ter sido deslanchada no dia 23 de maio, mas ambos estavam no exterior.

O Fantástico levou ao ar neste domingo reportagem a respeito do imbróglio, com alguns vídeos bastante eloquentes. Em síntese:
- a PF começou a investigar o caso depois de reportagem na Folha de abril do ano passado;

- ninguém na Megalic quis falar com a reportagem do Fantástico;

- a empresa repassou dinheiro para pessoas jurídicas (e físicas) que não têm relação nenhuma com seu ramo de atividade, todas de Brasília;

- nos respectivos endereços dessas "parceiras", não há sinal de atividade empresarial;

- os donos desses supostos empreendimentos são Pedro e Juliana Salomão;

- estavam sendo monitorados pela PF, e há quase uma centena de vídeos mostrando que eles faziam saques em dinheiro na boca do caixa ou em lotéricas;

- mais de uma vez, Salomão entrou num carro com uma sacola contendo, digamos, "alguma coisa" e saiu sem nada;

- numa das gravações, Pedro Salomão chega à garagem de um hotel em Brasília e se encontra com o motorista do assessor parlamentar Luciano Cavalcante, que ali estava hospedado. Nota: "assessor" de quem ou do quê? Já esteve lotado no gabinete de Lira e agora trabalha na liderança do PP, o partido do presidente da Câmara;

- Salomão e o motorista do assessor do PP deixam a garagem e entram num outro carro; ao sair, o primeiro já não portava volume nenhum; a situação se repetiu em outro local;

- Pedro e Luciana também foram presos na quinta e liberados na sexta, e a defesa de ambos diz que eles vão colaborar com as investigações;

- a Justiça autorizou mandado de busca e apreensão também na casa de Cavalcante e na de seu motorista;

- no porta-malas do carro do assessor, a PF encontrou um pacote com R$ 150 mil e seu passaporte;

- Cavalcante é, a um só tempo, funcionário da liderança do PP em Brasília e presidente do União Brasil de Alagoas; Gláucia, sua mulher, também já trabalhou no gabinete de Lira;

- outro investigado e suspeito de receber dinheiro da Megalic é o policial alagoano Mutilo Nogueira. Em um de seus endereços, a PF achou nada menos de R$ 3,5 milhões em dinheiro vivo, acondicionados numa sacola e num cofre. Sua defesa diz que ele é policial e empresário e nada tem a ver com kits de robótica.

- em entrevista à GloboNews, Lira, creiam, negou que tenha havido superfaturamento; disse não ter relação com o que está acontecendo e asseverou que não está sendo atingido nem acha que ação da PF seja uma provocação.

LIRA ESTÁ BRAVO
O deputado está soltando mais fogo do que os dragões de Daenerys Targaryen em "Game of Thrones". Desde que se lançou à disputa pela presidência da Câmara contra Baleia Rossi (MDB-SP), em 2021, acostumou-se a só vencer. A sua consagração na Casa se deu com a reeleição deste ano, como candidato único do governo e da oposição bolsonarista.

Mesmo o contratempo no Supremo com o orçamento secreto acabou resultando numa solução de compromisso. Metade dos R$ 19 bilhões que estavam reservados para este ano ficaram sob sua influência, e o governo disse que distribuiria a outra em parceria com os parlamentares.

O presidente da Câmara segue muito poderoso, mas não é o vice-rei do Brasil, a exemplo do que se viu no governo Bolsonaro. E ele quer mais. Na votação da MP dos Ministérios, deixou que a coisa chegasse à beira do precipício para se colocar, depois, como fiador de parte importante dos votos, mas não sem enviar um recado: de agora em diante, o governo está sozinho, já que a articulação política não funciona. Aliados seus — e não adversários — dizem pelos cantos que ele quer a cabeça de Alexandre Padilha (Relações Institucionais), além do Ministério da Saúde.

E aí veio a operação da Polícia Federal.

DESCONFIANÇA
Na própria quinta, Flávio Dino, ministro da Justiça, conversou com Lira na residência oficial da Presidência da Câmara. E assegurou que o governo nada tem a ver com a operação pela PF. O fato de ter sido realizada no dia seguinte ao calor que ele fez o governo passar levou alguns de seus aliados -- e, tudo indica, ele próprio -- a inferir que se tratava de uma retaliação. É hipótese conspiratória, sem fundamento. A decisão partiu da Justiça de Alagoas, e Lira não é investigado, hipótese em que o caso teria de migrar para o Supremo.

Mas é claro que a situação é delicada para ele. Muita gente do seu entorno está enrolada numa lambança. Ainda que o governo federal nada tenha a ver com a operação, e não tem, o deputado parece um pouco mais fragilizado para o jogo bruto do que estava na quarta.

Convém voltar ao começo. Esse esquema que está sendo investigado, de desvio milionário de recursos do "kit robótica", nasce lá com o Orçamento Secreto — o modo que assumiu as "emendas do relator" durante o mandarinato de Lira na Câmara, ao tempo do desgoverno de Jair Bolsonaro.

PERDEU A MÃO
É claro que Lira perdeu a mão. Seu comportamento durante a tramitação da MP dos Ministérios teve o cheiro inequívoco da chantagem em cena aberta. Ainda na quarta, enquanto se discutia a votação da MP, afirmou:
"Venho alertando dessa falta de ação de pragmatismo na resolutividade do dia a dia, na falta de atenção. Vamos conversar e sentir se a Câmara dará mais uma vez o crédito ao governo. Se o resultado for de não aprovação e de não votação da MP, não deverá a Câmara ser responsável pela falta de articulação política do governo".

"Falta de pragmatismo na resolutividade do dia a dia" e "falta de articulação". Isso significa, afinal de contas, o quê? Que diabos quer Lira?

Ele não abandonou seus planos da noite para o dia, não é?, e está furioso com a investigação em curso, que vê como uma maneira de atingi-lo. Mas por que isso seria ao menos plausível? Porque o rolo envolve aliados seus, e é ele o chefe político da turma. Certamente os implicados lhe cobrar "resolutividade". E isso seria o quê? Interferir na investigação da PF? Não creio que possa acontecer.

Em suma: Lira é poderoso; tem um certo jeito "Game of Thrones" de ser e reage muito mal se acha que está tendo seu poder confrontado. Vale dizer: está pronto para cometer um grande erro. Convém, pois, que se lembre de Eduardo Cunha... Não se deve perder a vida por delicadeza, escreveu um poeta. Nem por brutalidade, acrescento eu.

O governo Lula não é o segundo governo Dilma, mesmo com o Congresso hostil que aí está, e o STF não tem mais uma maioria que funciona como puxadinho do golpismo lava-jatista. Se Lira for mesmo a raposa que dizem, vai perceber que o mais prudente é distensionar o ambiente. Se der uma de doido, tenho minhas dúvidas se consegue o número necessário para levar o país para impasses institucionais.

Já há mais gente do que ele gostaria de admitir que vê em Lula o caminho da normalidade institucional.

O presidente da Câmara está disposto a ser o homem que ganha com a crise?

"O PRÍNCIPE" OU "O PEQUENO PRÍNCIPE"
Maquiavel ensina, com certo desalento, não como norte ético, que as pessoas não dão bola para os meios empregados desde que os fins sejam satisfatórios. Está no Capítulo XVIII de "O Príncipe":
"Nas ações de todos os homens, em especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mesmas. Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no mundo não existe senão o vulgo..."

Lira terá "fins" a oferecer com os meios que emprega? Se Maquiavel parecer difícil, que se lembre de outro príncipe, "O Pequeno Príncipe", de leitura mais amena. Ensinou o rei ao principezinho:
"A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos uma revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis".

Se Lira resolver investir no impasse, quem está disposto a se lançar ao mar por ele?

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