quinta-feira, 8 de junho de 2023

Marco temporal viola Carta; Moraes acerta. E o conservador pró-indígenas


Indígena da etnia Haliti-Paresi, da Terra Indígena Utiariti, no Mato Grosso. A demarcação não é uma concessão, mas um direito assegurado pela Constituição Imagem: Reprodução/Funai

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, votou nesta quarta contra a definição de um marco da presença indígena numa determinada área — a data da promulgação da Constituição — como precondição para a demarcação. Assim, até agora, são dois magistrados a se posicionar contra o tal "marco temporal" (além de Moraes, também Edson Fachin) e um a favor: Nunes Marques. André Mendonça pediu vista. Tem um prazo de 90 dias para entregar seu voto, mas deu a entender que deve fazê-lo antes.

Repita-se: nada há na Constituição, absolutamente nada, que sugira a existência de uma data de referência. Transcrevo caput e Parágrafo 1º do Artigo 231:

"Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições."

RAPOSA SERRA DO SOL E SANTA CATARINA

E por que começou essa conversa? Quando se votou a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em 2009, o então ministro Menezes Direito, do Supremo, defendeu que se reconhecesse como terra indígena, naquele caso, a área ocupada na data da promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988. E propôs ainda 19 condicionantes. Embora inexistisse efeito vinculante, os tribunais -- e o próximo Supremo -- passaram a adotar essa data como referência para definir se existe ou não justificativa para a demarcação. Uma nota: o marco temporal não está entre as tais "condicionantes"; integrava o voto vista de Direito.

E por que, agora, o STF fará um julgamento de mérito, com efeito vinculante? Porque há um Recurso Extraordinário, de que o ministro Edson Fachin é relator, que pede a anulação da Portaria 1.128/2003, do Ministério da Justiça, que declarou ser de posse indígena uma área de 37.108 hectares em Santa Catarina, considerada tradicionalmente ocupada pelas comunidades Xoqleng, Kaingang e Guarani, denominada Terra Indígena Ibirama Lá-Klanô. A alegação é a de que a área não estava ocupada por indígenas na data de promulgação da Constituição. O colegiado vai decidir se a norma viola os direitos não índios de residentes em terrenos circundantes à área original da terra indígena.

O ministro afastou a tese de que as condicionantes estabelecidas no caso de Raposa Serra do Sol devam ser aplicadas às demais controvérsias sobre o tema. Lembrou, e com razão, que, a julgar os embargos de declaração — pedido de esclarecimento — naquele caso, o Plenário explicitou a inexistência de efeitos vinculantes.

Como se sabe, a Câmara aprovou um projeto de lei que estabelece o marco temporal. O texto, lembre-se, traz ainda outras ameaças a terras indígenas já demarcadas. Entendo que o PL é inconstitucional e que não se poderia recorrer nem mesmo a uma emenda constitucional para mudar o Artigo 231 porque se trata de direito fundamental assegurado às comunidades tradicionais, constituindo-se, pois, em cláusula pétrea, conforme o Artigo 60 da Carta.

DE VOLTA AO VOTO DE ALEXANDRE

Se o marco temporal ignora a Constituição e a obviedade de que havia, em 5 de outubro de 1988, indígenas que tinham sido expulsos de suas terras, é igualmente verdade que uma referência se faz necessária. As duas posições só servem para acirrar conflitos. Moraes votou contra a definição da data, mas construiu uma tese com conceitos e critérios ou para levar adiante a demarcação ou para não efetivá-la nas forma pretendida, mas reduzindo as possibilidades de conflito. Reproduzo:

I - A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;

II - A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §º do artigo 231 do texto constitucional;

III - A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição;

IV - Inexistindo a presença do marco temporal CF/88 ou de renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos o seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada que tem haver por objeto a posse, o domínio, ou a ocupação de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nela existentes, assistindo ao particular direito à indenização prévia, em face da União, em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, tanto em relação à terra nua, quanto às benfeitorias necessárias e úteis realizadas;

V - Na hipótese prevista no item anterior, sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa concordância;

VI - O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto no 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;

VII - O redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;

VIII - As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;

IX - As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;

X - Há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.

RETOMO
Observo que os itens I, II e VIII a X reproduzem disposições constitucionais. No III, o ministro se refere à obvia inconstitucionalidade do marco.

No IV, a tese busca conciliar o interesse dos povos originários, sem, no entanto, ignorar os daqueles que desenvolveram, de boa-fé, uma atividade econômica em terras de ocupação tradicional dos indígenas. Devem ser, diz o ministro, indenizados. Observe-se que a exigência de boa-fé como condição da negociação descarta a recompensa a grileiros.

Inexistindo marco temporal e sendo impossível defini-lo, o ministro lembra, no item V, que se deve também preservar o interesse público e a paz social:
"Sendo contrário ao interesse público a desconstituição da situação consolidada e buscando a paz social, a União poderá realizar a compensação às comunidades indígenas, concedendo-lhes terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas, desde que haja expressa concordância".

A rigor, convenham, indígena era todo o Brasil. Mas e a história? A reparação de direitos não pode ignorar direitos. O que Moraes propõe é que se substitua o conflito pela negociação. Até quando? Até quando houver demandas legítimas. Não é assim na democracia?

O PL aprovado pela Câmara é inconstitucional de cabo a rabo. E não busca a paz social. É patrocinado pelos chamados "ruralistas", embora o setor que representem seja hoje o que recebe — e é compreensível que assim seja — a maior quantidade de investimentos e recursos públicos, o que também explica a sua pujança. Antes mesmo do Plano Safra, por exemplo, o BNDES já tornar disponíveis nada menos de R$ 10,5 bilhões em crédito.

Pergunta evidente de resposta idem: o agronegócio precisa de conflitos com povos originários? Ou, para lembrar outra tensão em curso, com o MST? Parece-me que não. Entendo que o setor precisa de lideranças um pouco mais afinadas com o pacto civilizatório. O contrário prejudica precisamente os negócios.

ESPÍRITO DA CONSTITUIÇÃO
Peço que leiam importante reportagem publicada no Globo. Não fosse a literalidade da Constituição ignorar um marco temporal, há também o seu espírito. Optou-se pela proteção aos índios e se considerou, justamente, que muitas comunidades haviam sido expulsas de sua terra.

E quem deu a redação final ao capítulo? Um militar, um conservador: Jarbas Passarinho, então senador pelo PDS do Pará. José Fogaça, que foi sub-relator da Constituinte, lembra:
"O Jarbas Passarinho tratava as questões com muita clareza e convicção. Então passou com tranquilidade essa posição dele. Me lembro que nem houve debate a respeito de os índios poderem voltar às terras que ocuparam em outros tempos, porque isso era indiscutível. A interpretação que se dava era essa porque a condição que os levou a sair é uma questão acidental"

Mais: um troço muito parecido com o marco temporal — um pouco pior — foi rejeitado. Previa que os direitos assegurados só se aplicavam "aos índios que efetivamente habitem terras indígenas e não possuam elevado grau de aculturação"

Lembra bastante o malfadado PL aprovado na Câmara. Afinal, aquele texto escancara a possibilidade de exploração de áreas indígenas e traz no subtexto o viés da aculturação.

Passarinho — coronel, intelectual da ditadura militar e signatário do AI-5 que se converteu ao regime democrático — era, há 35 anos, mais progressista, no tema, do que esses que se dizem "ruralistas". Boa parte não saberia distinguir um alho de um bugalho.

Definir um marco temporal viola a Constituição. Jogaria no lixo o Artigo 231. E o que se quer é negociação, não a perenização de conflitos. O voto de Moraes abre esse caminho.

Nenhum comentário: