sábado, 17 de junho de 2023

Estado de sítio, intervenção militar, GLO: entenda em 5 pontos as mensagens golpistas encontradas no celular de Mauro Cid


O ex-presidente Jair Bolsonaro e seu ajudante de ordens, Mauro Cid

A extração de dados do telefone celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), revelou mensagens acerca de uma trama para dar um golpe de estado, afastar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e colocar o país sob intervenção militar. Detalhes sobre a perícia do material realizada no aparelho mostram a hipótese de decretação de estado de sítio, uma das medidas mais extremadas previstas na Constituição para situações excepcionais, como em caso de guerra.

No relatório, produzido pela Diretoria de Inteligência da Polícia Federal, há a menção a um documento intitulado “Forças Armadas como poder moderador”. Nele é apresentado um plano baseado numa tese controversa em que militares poderiam ser convocados para arbitrar conflitos entre os poderes.

O documento ensina uma espécie de "passo a passo" do golpe e não é o mesmo da minuta golpista encontrada com o ex-ministro Anderson Torres. Segundo o plano, Bolsonaro deveria encaminhar as supostas inconstitucionalidades praticadas pelo Judiciário aos comandantes das Forças Armadas. Os militares então poderiam nomear um interventor investido de poderes absolutos.

Ao todo, a declaração enviada por Mauro Cid conta com três páginas argumentando sobre a situação política do país. Trechos do texto indicam que se tratava de um esboço que estava sendo preparado, como a indicação de incluir novos pontos. Na página final, por exemplo, há a inscrição "[Aqui, tratar de forma breve das decisões inconstitucionais do STF]", um aviso de que aquilo seria incluído posteriormente.

O final do documento era marcado pela declaração de um estado de sítio. O rascunho termina em primeira pessoa e com uma expressão típica do ex-presidente Jair Bolsonaro, "dentro das quatro linhas".

"Afinal, diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem", afirma o texto.

O estado de sítio está previsto na Constituição para situações de "comoção grave de repercussão nacional" ou de "declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira". A medida possibilitaria algumas medidas excepcionais, como a suspensão da liberdade de reunião, restrições à liberdade de imprensa e permissão para requisição de bens e para busca e apreensão em domicílio.

A solicitação é apresentada pelo presidente da República, mas depende de aprovação do Congresso Nacional. Além disso, antes de apresentar o requerimento, o presidente precisa consultar dois órgãos. Um deles é o Conselho da República, composto pelo presidente, o vice-presidente, os presidentes da Câmara e do Senado, o ministro da Justiça e os líderes da maioria e da minoria da Câmara e do Senado.

O segundo órgão é o Conselho de Defesa Nacional, formado também pelo vice-presidente e pelos presidentes da Câmara e do Senado, além dos ministros da Justiça, das Relações Exteriores e da Fazenda e de comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica.

Intervenção militar

O plano recuperado no telefone de Mauro Cid demonstra um movimento, articulado em grupos contendo militares, que começou após a vitória do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) diante de Jair Bolsonaro (PL) nas eleições presidenciais do ano passado.

Segundo o documento, Jair Bolsonaro deveria encaminhar as supostas inconstitucionalidades praticadas pelo Judiciário aos comandantes das Forças Armadas. Os militares então poderiam nomear um interventor investido de poderes absolutos.

Esse interventor, na sequência, poderia fixar um prazo para o “restabelecimento da ordem constitucional”. Assim, poderia suspender decisões que considerasse inconstitucionais, como a diplomação de Lula. Além disso, poderia afastar preventivamente ministros do STF como Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que na época integravam o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No lugar, convocaria os substitutos, Kassio Nunes Marques, André Mendonça e Dias Toffoli.

Operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)

Na perícia realizada no celular de Mauro Cid, os agentes da Polícia Federal também localizaram arquivos que tratam da chamada Garantia da Lei e da Ordem (GLO), uma operação militar que permite exclusivamente ao presidente da República convocar as Forças Armadas. A medida ocorre, segundo a legislação brasileira, nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem.

“Trata-se de uma “Coletânea de Aspectos da Constituinte sobre Garantia dos Poderes Constitucionais e GLO”. Foram consultados os repositórios da Câmara dos Deputados e do Senado Federal com destaques para textos”, dizem os policiais em um trecho do documento.

De acordo com o artigo 142 da Constituição Federal, a Lei Complementar 97 de 1999 e o decreto 3.897 de 2001, durante a GLO, é concedida provisoriamente aos militares a atuação com poder de polícia até que a normalidade seja restabelecida.

Esses dispositivos legais prevem que as ações sejam em uma área restrita e por tempo determinado, com o objetivo da preservação da ordem pública, da integridade da população e do patrimônio e do pleno funcionamento das instituições.

Ameaças a ministros

Além do documento com instruções para desconstituir instituições democráticas, criado em 25 de outubro de 2022, os investigadores também interceptaram trocas de mensagens entre militares e Mauro Cid dando conta de insultos e até ameaças a ministros do STF.

"Evidenciou-se que em diversos momentos dos diálogos foram tratados assuntos relacionados ao cenário político-eleitoral que sucedeu o segundo turno das eleições presidenciais", diz a PF no relatório.

Em um dos grupos no qual Cid estava, o "Dosssss!", com militares da ativa, integrantes defendiam a realização de um golpe de Estado e proferiam ataques a Alexandre de Moraes, que também preside o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em um aplicativo de conversas, um deles afirmou que a ruptura democrática "já ocorreu":

"Estejamos prontos... A ruptura institucional já ocorreu... Tudo que for feito agora, da parte do PR (presidente), FA (Forças Armadas) e tudo mais, não vai parar a revolução do povo". Outro integrante do grupo citou Moraes:

"Vai ter careca sendo arrastado por blindado em Brasília?".

Em outro trecho de mensagens, participantes de grupos defendem manifestações antidemocráticas e golpe de Estado.

"Se o Bolsonaro acionar o 142 [artigo da Constituição que regulamenta a atuação das Forças Armadas], não haverá general que segure as tropas. Ou participa ou pede para sair!!!", escreveu um membro em 21 de dezembro do ano passado.

Participação em atos antidemocráticos

A perícia no aparelho celular de Mauro Cid possibilitou também que a PF concluísse que alguns dos militares também participaram de atos antidemocráticos. Um deles foi o sargento do Exército Luís Marcos dos Reis, outro ex-assessor de Bolsonaro, preso por ter supostamente integrado o esquema que fraudou cartões de vacinação do ex-presidente, seus familiares e funcionários.

Segundo a investigação, o militar esteve no acampamento no Quartel-General do Exército em Brasília e incentivou a "tomada de poder pelas Forças Armadas". No relatório, é destacado que o sargento enviou vídeos e imagens com a participação dele nas invasões às sedes dos Três Poderes.

"Eu estou no meio da muvuca! Não sei o que está acontecendo! O bicho vai pegar!", escreveu em uma das mensagens.

Em seguida, o sargento enviou um áudio, na mesma troca de mensagens, que dizia: "Entraram no Planalto, no Congresso, Câmara dos Deputados, entrou no STF. E quebrou, arrancou as togas lá daqueles ladrão (sic). Arrancou tudo! Foi, foi. O bicho pegou hoje aqui!".

Mais tarde, por volta de 20h, ele afirmou que já estava em casa e que trabalharia cedo no dia seguinte, mas que "o recado foi dado".

Em nota, Jair Bolsonaro negou participação em "qualquer conversa sobre um suposto golpe de Estado". Pelas redes sociais, seus advogados defenderam ainda que Cid, pela função de ajudante de ordens, "recebia todas as demandas que deveriam chegar ao presidente da República", como "pedidos de agendamento, recados etc". Ainda no posicionamento, apontam que o celular dele teria se transformado em uma "simples caixa de correspondência que registrava as mais diversas lamentações".

Já os advogados Bernardo Fenelon e Bruno Buonicore, que defendem Mauro Cid, afirmaram que “por respeito ao Supremo Tribunal Federal, todas as manifestações defensivas serão feitas apenas nos autos do processo”.

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