quarta-feira, 7 de junho de 2023

Absurdo no caso Lira vem da PGR, não do STF; Corte não é o órgão acusador


Arthur Lira, presidente da Câmara, que se livrou de mais uma. Agora, ele é perseguido apenas pelos "kits" de robótica, a cada dia mais inexplicáveis Imagem: Igor Estrela/Metrópoles

As costas do Supremo são tão largas que, sobre elas recaem até as responsabilidades que não tem. Nesta terça, a Primeira Turma do tribunal acatou, por cinco a zero, recurso interposto pela defesa de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e ele, que já era "quase" réu por corrupção passiva, deixou de sê-lo. Explicarei o "quase". Votaram André Mendonça, Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso.

De imediato, diga-se: ainda que os ministros quisessem confirmar a condição de réu, até poderiam, mas seria inútil: a PGR se posicionou contra a abertura da Ação Penal, e é o Ministério Público Federal o titular da dita-cuja. Se o STF decidisse contra a posição do MPF, colocar-se-ia, ele próprio, como ente de acusação e como juiz, o que fere a Constituição. O tribunal pode contrariar o Ministério Público, no "sim" e no "não", no caso de abertura de inquérito. No de ação penal, que sentido faz a corte divergir do ente que vai investigar se este diz não haver... o que investigar?

Esse caso nada tem a ver com os "kits" de robótica. E, com efeito, a Primeira Turma já havia tornado Lira réu, em outubro de 2019, por três votos a zero: Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes e Rosa Weber. Luiz Fux e Barroso não votaram.

O CASO E O PASSADO

Qual é mesmo o caso?

Lira era acusado de ter recebido propina do então presidente da Companhia Brasileira de Transportes Urbanos, Francisco Colombo, em troca de apoio para permanecer no cargo, que pertencia à cota do PP. Em 2012, Jaymerson José Gomes de Amorim, um seu assessor, foi preso no aeroporto de Congonhas com R$ 106 mil escondidos no corpo.

Em depoimento, Amorim deu informações desencontradas sobre a origem do dinheiro. O doleiro Alberto Youssef, em delação, afirmou que Lira era o destinatário da grana. Os indícios não eram favoráveis ao agora presidente da Câmara. No dia da viagem, o assessor enviou mensagem ao deputado informando que o voo para São Paulo estava atrasado e mencionou que alguém o pegaria no aeroporto. Segundo a acusação, era Colombo. Amorim foi detido ao tentar embarcar de volta a Brasília.

Num primeiro momento, no dia da apreensão, ele afirmou que não conhecia Lira e que a origem do dinheiro era uma consultoria que teria feito. Posteriormente, em depoimento, admitiu que trabalhava para o deputado e que comprou a passagem com o cartão do parlamentar. Convenham: a situação não é lá muito abonadora.

Segundo a denúncia apresentada em abril de 2019 pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, o deputado orientou o assessor a ocultar o dinheiro nas vestes, junto ao corpo, inclusive dentro das meias, de modo a não ser detectado pela área de segurança do aeroporto. Ao tentar passar pelo aparelho de raio-X, ele foi abordado por agentes aeroportuários e detido pela Polícia Federal.

O QUE MUDOU?

A defesa de Lira recorreu por meio de um instrumento chamado "Embargos de Declaração". Alegou que a Lei Anticrime rejeitava uma denúncia baseada exclusivamente em delação. Recusaram o argumento Marco Aurélio, Moraes, Barroso e Rosa, mas Toffoli, que havia migrado para a Primeira Turma depois de deixar a Presidência da Corte, pediu vista.

Pois bem: em abril deste ano, houve a reviravolta na PGR: Lindôra Araújo, vice-procuradora-geral, pediu o arquivamento do caso por, segundo disse, ausência de justa causa. Passou a argumentar como a defesa: a denúncia se basearia apenas na delação de Youssef.

A sua argumentação não deixa de ser curiosa:
"Em que pese (sic) os elementos de prova apresentados na denúncia sejam suficientes para comprovar a existência de vínculo entre Arthur Lira, Jaymerson Amorim e os valores apreendidos em poder deste último (...), apenas os relatos dos colaboradores de que 'ouviu dizer' não são suficientes para o recebimento da denúncia, sem a existência de elementos autônomos de corroboração do que foi narrado"

Parece claro que ela própria admite haver mais do que simples conversa de delator.

OS DA SEGUNDA NA PRIMEIRA

Toffoli já não pertence mais à Primeira Turma, mas lá voltou para apresentar o seu voto, que estava pendente. André Mendonça, também da Segunda Turma, entrou na vaga de Marco Aurélio e herdou os processos de que aquele era o relator, inclusive este de Lira.

Quando o antecessor já votou num determinado processo, não é permitido que seu sucessor apresente um novo voto. Mendonça, no entanto, apresentou uma questão de ordem, acatada por unanimidade, apontando que um novo voto era pertinente, uma vez que havia uma questão essencial não apreciada por Marco Aurélio: a mudança de opinião da PGR. Ele votou, então, pela rejeição da denúncia e foi seguido pelos demais ministros.

Alexandre de Moraes, que votara originalmente pelo recebimento, ironizou a PGR:
"De uns tempos para cá, nós estamos vendo vários arrependimentos de denúncias ofertas anteriormente. (...) A própria Procuradoria, com a sua manifestação, já afirmou que permanecerá inerte em uma eventual produção probatória. Então nós temos aqui a confissão de um arrependimento, nesse caso eficaz, que só protelaria algo que desde já verificado como sem condições de garantir uma ação penal com justa causa".

ENCERRO
Enquanto há recursos pendentes, não se pode proclamar o resultado, e Lira ainda não era réu. Assim, a conversa de que Lira foi "desdenunciado" não procede. Exótica, com efeito, foi a ação da PGR. Parece-me insustentável a tese, e a própria Lindôra reconhece, de que nada mais havia além das palavras de Youssef.

"Ah, dadas as circunstâncias, o STF até poderia ignorar a nova manifestação da PGR". Poderia? Os que assim pensam estão a refletir no que dizem? Faz sentido o tribunal assumir o papel de órgão acusador? Como lembrou Moraes, o MPF estava afirmando nos autos que permaneceria "inerte em uma eventual produção probatória".

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