terça-feira, 20 de junho de 2023

Ives e filha apelam à ironia e negam apoio a golpismo. E tentações do diabo


Ives Gandra e Angela Gandra

Há circunstâncias em que se pode usar a linguagem da generosidade e do amor para fazer pouco caso de valores que são caros ao pacto civilizatório. Infelizmente, é a prática a que se dedicam Ives Gandra Martins e Angela Gandra, sua filha, ambos advogados, em vídeo nas redes sociais.

Ives é defensor da tese exótica de que o Artigo 142 da Constituição permite a intervenção das Forças Armadas no caso de um conflito entre os Poderes. Isso não está na Carta e em lugar nenhum. Trata-se de uma leitura obviamente golpista do nosso diploma maior sob o pretexto de preservar a sua integridade. Há um paradoxo insanável no que pretende ser a sua "interpretação" que, ora vejam!, seria resolvido com tanques nas ruas e nos Três Poderes — talvez, à época, não no Executivo, já que tal leitura solerte servia a Jair Bolsonaro.

As respostas de inequívoco teor golpista dadas pelo advogado a questionário que lhe foi enviado por um militar estavam no documento encontrado no celular de Mauro Cid. Tal documento era, ele mesmo, a arquitetura de um... golpe. Com absoluta certeza, o episódio não enfeita a biografia do veterano advogado. Seu conservadorismo era conhecido — com alguma frequência, avançando para o reacionarismo. Na tal série de perguntas, justifica e endossa a quartelada de 1964, por exemplo. Mas que, em 2022, ajudasse a engrossar o caso da intervenção armada, bem, isso foi além do que esperavam mesmo seus críticos mais ácidos.

Pegou mal. Muito mal.

No tal vídeo, Angela diz, com doce ironia:
"Olá, queridos seguidores. É só para dar notícia do golpe, tá? Eu queria dizer que nós dois somos super-apaixonados pelo estado democrático de direito. E acho que o único golpe que eu quis dar e acho que o meu pai também é o golpe no coração das famílias para fortalecer os vínculos: um golpe de paz e de amor. Vamos juntos, né, papa?"

E o pai responde:
"Não há dúvida. Agir e não reagir. Levar as coisas boas e fazer como existe no Céu: não há problema de direito porque só existe uma lei: a lei do amor. É o que nós procuramos praticar".

E Angela conclui:
"Nada de golpe, tá? Beijo grande para vocês. Vamos descontrair".

Poderia fazer digressões sobre essa conversa de sair das dissensões da Terra apelando ao Céu. Mas vou poupar pai e filha. Lembro que, no dia em que veio a público a contribuição de Ives à tese golpista que estava no celular de Cid, o doutor concedeu entrevista e reiterou o seu entendimento, só destacando que não havia dado aquela resposta ao ajudante de ordens. E daí? Não era a primeira vez que insistia no exotismo.

Jamais vou questionar o amor da filha que tenta proteger o pai. Mas a "nonchalance" que a advogada dispensa a assunto tão sério não merece a minha condescendência.

Amor? Se a tese de Ives tivesse prosperado, doutora, filhas e filhos poderiam ter ficado sem mães e pais, ou mães e pais, sem seus filhos. Em vez de amor, teríamos mortos. O coração das famílias teria se tingido pelo sangue que uma falácia jurídica, unida à truculência das armas, teria feito correr. No Céu não existe problema de direito porque há o Onipotente — que nunca foi doce com a rebeldia, não é mesmo?

Na terra do estado de direito, que vocês dizem defender, o "deus" é a democracia, e seus mandamentos estão na Constituição, que a tese de Ives rasga sem perder a viagem: exaltou também a quartelada de 1964. E, ali, como se sabe, pais e mães perderam seus filhos; filhos perderam seus pais e mães; irmãos desapareceram e foram torturados.

Peça desculpas, senhor Ives Gandra! É a única coisa decente a fazer. E tire Deus dessa história. Ele não tem nada com isso. Na democracia, todo golpismo é tentação do capeta, do tinhoso, do zarapelho, do sete-peles, do caramulhão. 

O vídeo de ambos está aqui. Abaixo, o que afirmei em "O É da Coisa"

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