terça-feira, 6 de junho de 2023

"Fui agente infiltrado de Moro". E perícia contesta que voz seja de Appio


Tony Garcia, Sergio Moro, Gabriela Hardt e Eduardo Appio: todos são personagens, cada um no seu papel, do desastre a que a Lava Jato conduziu o país Imagem: Reprodução

A história é de tal sorte estupefaciente que, confesso, até eu, que penso o que penso sobre a Lava Jato, fico um tanto ressabiado. Mas também aprendi, desde os primeiros passos da operação, ainda em 2014, que tudo era possível na "República de Curitiba" — não a da capital do Paraná, mas aquela liderada por Sergio Moro e Deltan Dallagnol.

Qual é a síntese do caso?

Antonio Celso Garcia, o Tony Garcia, empresário de Curitiba e ex-deputado estadual, afirma ter atuado como uma espécie de espião de Sergio Moro, gravando ilegalmente ou facilitando a gravação de conversas com políticos, empresários e advogados. Pior: diz ter denunciado a prática ilegal à juíza Gabriela Hardt em depoimento prestado em 2021. A magistrada, no entanto, não teria tomado nenhuma providência. A informação foi inicialmente publicada pela Veja. Garcia concedeu uma entrevista ao 247 com afirmações muito além do arco da velha. Há até uma tal "festa da cueca"...

O depoimento a Hardt só foi enviado ao STF depois que o juiz Eduardo Appio assumiu a 13ª Vara Federal de Curitiba. O juiz, como se sabe, foi afastado por decisão do TRF-4 em razão de suposto telefonema a João Eduardo Barreto Malucelli, filho do desembargador Marcelo Malucelli, além de sócio e genro de Moro. A defesa de Appio apresentou um laudo que contesta que a voz gravada João Eduardo seja do juiz (ver abaixo).

OS PRIMÓRDIOS
Garcia foi preso em 2004 sob a acusação de gestão fraudulenta do Consórcio Nacional Garibaldi. No fim daquele ano, fez um acordo de colaboração premiada com os procuradores da força-tarefa que cuidavam do caso Banestado, cujo juiz era Moro, então titular da 2ª Vara Federal de Curitiba -- hoje 13ª. A partir de então, conta ele, passou a atuar como espião do então juiz.

Ao 247, Garcia conta que ele próprio procurou os promotores do Gaeco em 2018 para se precaver de eventuais delações envolvendo o governo de Beto Richa no Paraná e diz que tinha gravações que fez de moto próprio — nesse caso, não instruído por Moro. Um novo acordo foi feito, disse ele, para se proteger. O MPF ficou sabendo de suas negociações, e entraram no caso.

Segundo Garcia, os procuradores insistiam em ter acesso integral a um pen drive com as gravações. Afirmou à Folha: "Não é que eu não queria dar. Mas eu estava exigindo que, para entregar, eles anuíssem o meu acordo com o Gaeco, para eu ficar protegido. Foi aí que eles começaram com retaliação":
"O Deltan mandou buscar toda a filmagem no andar onde fica meu escritório, no Curitiba Trade Center, para saber quem tinha frequentado lá. Eles tinham uma Guantánamo".

O MPF pediu a rescisão em 2018, alegando que ele havia omitido outras informações. Em novembro do ano passado, Hardt suspendeu o acordo, justamente depois das denúncias que ele fez, e Garcia voltou a ser réu. Agora acusada de ter omitido o depoimento-bomba, a juíza anunciou que vai processar Garcia e se declarou impedida para atuar no caso. O empresário presta novo depoimento à Justiça Federal na próxima sexta. Nota: na Justiça, Beto Richa conseguiu provar que uma gravação que o incriminava tinha sido editada.

O AGENTE
Em entrevista à Folha na sexta, Garcia relata parte do que teria contado a Gabriela Hardt:
"Nessa audiência, surpreendi até os meus advogados, que não sabiam de nada, e coloquei tudo que eu fui obrigado a fazer. Fui agente infiltrado [de Moro e dos procuradores]".

"Eles [procuradores] me obrigaram a andar com dois telefones deles com microfone aberto. Foi assim que eu gravei o [advogado] Roberto Bertholdo, um monte de gente, para eles. Quando eles pegavam conversas que interessavam, eles levavam ao Moro e ele esquentava as conversas. Fazia como se tivesse autorização judicial, com data retroativa."

A FESTINHA
Também atuando, segundo Garcia, para Moro, Sergio Costa Filho, um sócio de Bertholdo, com que estava rompido, havia gravado uma festinha de desembargadores do TRF-4 com garotas de programa num hotel de luxo em Curitiba. Afirma Garcia em entrevista ao 247:
"E ele [Sergio Moro] botou os desembargadores que ele pegou a fita do Sérgio [Costa Filho] lá, que eu ajudei ele a buscar, botou os desembargadores no processo, fez alguma coisa? Também não. Tem desembargador que, com medo de aparecer a gravação quando soube que pegaram, que contou pra mulher, e a mulher se separou dele quando falou da festa da cueca. Teve até isso que aconteceu. Não vou falar quem é. (...) O Sergio [Costa Filho] gravou com a gravata, com um prendedor de gravata que ele tinha. São essas gravações que o Sergio Moro queria, entendeu? (...) Essas gravações que o Moro queria e que eu ajudei ele a buscar. Numa conversa com o Bertholdo, ele me falou de uma coisa de onde ele guardava um Jaguar, e eu dei mais ou menos pra eles, e depois o Moro me falou que tinha conseguido pegar e que tava ótimo, entendeu? E nunca apareceu no processo. Quando eu perguntei, ele desconversou. Aí eu pergunto: onde estão essas gravações? Elas tinham que estar no processo. Eu ajudei a buscar. Cadê essas gravações? Ou ele usou isso para fazer chantagem? (...) Eu quero fazer acareação com ele [Moro].

Em nota, Moro afirma:
"Tony Garcia é um criminoso que foi condenado, com trânsito em julgado, por fraude e apropriação indébita. A pedido do Ministério Público e com supervisão da Polícia Federal, resolveu colaborar com a Justiça em investigação de esquemas de tráfico de influência e corrupção, ocasião na qual foi autorizado a gravar seus cúmplices. Este tipo de diligência é autorizada pela lei. Nunca houve qualquer escuta clandestina de conhecimento do senador, à época juiz, Sergio Moro".

A entrevista ao site é longa, e há detalhes em penca. Tudo invenção? Ele diz ter as provas. Uma coisa, no entanto, parece certa: o seu depoimento à juíza Gabriela Hardt não poderia ter sido engavetado, como foi.

VOZ DE APPIO?
A defesa de Appio apresentou nesta segunda ao corregedor do Conselho Nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, o resultado de perícia que questiona laudo da Polícia Federal usado para justificar o afastamento do juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, decisão tomada Pelo Conselho do TRF-4 no último dia 22.

Parecer técnico assinado por Pablo Arantes, professor adjunto do Laboratório de Fonética do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos, conclui, no resumo da defesa:
"A análise do expert na área de fonética forense é enfática no sentido de que, corroborando sua declaração, não se pode imputar ao Peticionário a autoria da ligação telefônica na medida em que, in verbis: (1) "(...) o uso de escalas qualitativas 'dá margem à subjetividade, em particular quando se pesa e combina os resultados da análise de diversos parâmetros'"; (2) "(...) o texto do Laudo não explicita nem justifica em nenhum momento o grau de relevância atribuído a cada exame apresentado na seção III.4, tanto os de natureza perceptiva quanto acústica (...); (3) "(...) o teor do que é apresentado no Laudo não justifica a atribuição do nível +3 (...)"; (4) "(...) os resultados relatados no Laudo são mais compatíveis com a atribuição do nível 0 na escala adotada, que equivale à descrição verbal 'o resultado nem corrobora nem contradiz a hipótese"

Vale dizer: segundo o especialista, o TRF-4 não tinha em mãos uma prova, mas uma hipótese que não é nem negada nem endossada pela perícia técnica.

Assim, a defesa pede a Salomão a reintegração de Appio nos seguintes termos:
"Diante do dano irreparável e da flagrante violação às garantias processuais e materiais relativas à inamovibilidade no exercício da jurisdição, a imediata suspensão, por Vossa Excelência, da decisão administrativa cautelar da Corte Especial Administrativa da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região que afastou o Peticionário, determinando-se, consequentemente, sua reintegração à condição de Juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR, submetendo-a, ato contínuo, à referendo do Plenário desse E. CNJ."

Appio é o juiz que decidiu, entre outras coisas, enviar o depoimento de Tony Garcia para o STF.

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