O governo Bolsonaro fez um elenco de 35 metas que, assegurou, cumpriria em 100 dias. O presidente não precisou de tudo isso para matar a reforma da Previdência imaginada por Paulo Guedes. O texto chegou ao Congresso em 20 de fevereiro. Neste 10 de março, constata-se que a proposta já foi para o ralo. Vale dizer: dados os 100 dias, o dito "Mito" precisou de apenas metade para inviabilizar aquela que era a única meta relevante não da largada, mas do mandato, como evidencia pesquisa da XP Investimentos que veio a público nesta terça.
Antes que continue, deixem que lhes diga uma coisa. Para ser franco, acho essa conversa de "cumprimentos de metas" uma espécie de "paixão de contabilista". E tem pouco importância fora da contabilidade. Política é outra coisa. Explico-me: elenco de metas sempre junta coisas desiguais, misturando itens importantes e desimportantes, tarefas fáceis e difíceis, coisas certas e grossas bobagens.
Se Bolsonaro tivesse cumprido 34 metas das 35 que anunciou, o conjunto seria de uma desimportância danada. A única que marcaria uma mudança de padrão seria a independência formal do Banco Central — um das que não foram cumpridas. Assim, por irrelevante, descarto a questão puramente contábil. O então candidato do PSL se elegeu sem um programa de governo. A reforma da Previdência virou a sua tábua de salvação junto aos mercados e a setores da elite, lembrando que ele jamais pactuou a medida com os milhões de pobres que também votaram nele. E o próprio mandatário se encarregou de mandar a proposta pelos ares com a bagunça que instalou e instaurou em Brasília sob o pretexto de fazer um governo inovador.
A Folha resolveu fazer a conta na ponta do lápis. Até esta segunda, o resultado era este: "20% do total não têm previsão de ser alcançados. No restante, 34% já foram realizados e anunciados, e 46% estão em fase de implementação". E daí? Olhem que, mesmo para alguém como este escriba, que não leva esse troço de metas a sério, isso poderia indicar um governo até operoso, o que é uma mentira clamorosa. Ao contrário: estamos diante de um desastre. É que os objetivos definidos para 100 dias são também necessariamente modestos.
SEM BASE, EIRA OU BEIRA
Jair Bolsonaro caminha para a metade do quarto mês de governo e, até agora, não conseguiu definir uma base de apoio no Congresso. A relação com o Legislativo é péssima, e ele não sabe como compatibilizar a administração com aqueles que seriam os objetivos de médio e de curto prazos da gestão. Eis, no entanto, o problema: quais são esses objetivos mesmo? Ninguém sabe. Nestes poucos mais de três meses, assistimos, por exemplo, à desconstituição do MEC, uma das pastas mais importantes e multifacetadas do Estado brasileiro. Milhares de estudantes que apelaram ao Fies estão sem o financiamento porque a pasta se transformou numa praça de guerra entre os ditos "olavetes" (seguidores de Olavo de Carvalho), pessoas ligadas aos militares e alguns técnicos que conseguiram manter a sanidade no hospício.
O Ministério das Relações Exteriores realizou a proeza de se indispor com a China, que responde por metade do superávit da balança comercial, e com os países árabes, que são quase um terço da outra metade. No ambiente continental, o Brasil abre mão de sua condição de líder regional para ser caudatário submisso e sabujo das escolhas de Donald Trump. Contra reiteradas declarações dos militares brasileiros, que descartam uma intervenção da Venezuela, o presidente da República flerta com essa possibilidade, dizendo ignorâncias assombrosas sobre as disposições constitucionais a respeito.
Basta ler a Constituição e a Lei 1.079 para perceber que, em relação à questão venezuelana, já cometeu crime de responsabilidade. O banditismo de Nicolás Maduro não dá a Bolsonaro o direito de se articular abertamente para depor o presidente de um país vizinho, pagando o mico de, na viagem aos EUA, dar uma passadinha na CIA para tratar do assunto. Chega a ser espantoso.
INCULTURA DEMOCRÁTICA
Como diria o próprio, "no tocante" à cultura democrática, atropelou mais uma vez a Constituição e a lei que trata dos crimes de responsabilidade ao determinar que as Forças Armadas comemorassem um golpe de Estado, o que, por óbvio, não vale como mensagem aos brasileiros de há 55 anos, mas àqueles submetidos a seus 100 dias de governo. Não é de espantar que esse presidente tenha divulgado um filminho pornô, seguido pela pergunta: "O que é golden shower"? É só o lado momesco da truculência.
No país dos mais de 63 mil homicídios, promoveu uma mudança deletéria no Estatuto do Desarmamento, ao facilitar a posse de armas e se mostra disposto a iniciar o proselitismoem favor da generalização do porte, o que corresponde a fazer, é inevitável que se diga, uma aposta em jogos políticos que matam pessoas. Sob a sua gestão, assiste-se a uma escalada da intolerância que, sim, faz vítimas.
A QUESTÃO MILITAR
Aos que esperavam uma eventual tensão entre o núcleo militar que compõe o governo, ao qual se dava de barato que o próprio Bolsonaro pertencesse, e os civis, eis que o país é surpreendido por sua vinculação com um guru de extrema-direita e seus sequazes que, na verdade, hostilizam os generais da reserva que integram a administração, acusando-os de tolher os movimentos do mandatário, que, assim, ficaria impedido de realizar aquele que seria o governo de seu gosto.
Há nessa tensão uma indisfarçável tentativa de provocar quarteis afora uma, digamos, agitação entre as baixas patentes e as intermediárias. Não por acaso, com acerto, o Exército decretou a prisão imediata de um grupo de soldados da Força que descarregou 80 tiros no carro em que viajava uma família que se dirigia a um chá de bebê. No episódio, morreu o músico Evaldo Rosa dos Santos, de 46 anos. As Forças Armadas não querem o incentivo ao "atire você mesmo" que hoje emana de figuras como o presidente da República e seu ministro da Justiça, Sérgio Moro.
Ao dar posse ao novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, Bolsonaro tartamudeia sandices e afirma esperar que os estudantes se desinteressem da política. Tentou ser profundo. Foi apenas obscurantista.
"Mas você não vê nada de bom nos 100 dias?" Vejo! Bolsonaro está se revelando como aquilo que é e como sempre achei que fosse, não como muitos passaram a vê-lo, edulcorando-o com o avesso dos defeitos que viam no petismo, atribuindo-lhe, então, virtudes que nunca teve.
Seu ódio à política, sua vocação para chefe de quarteirão, sua inclinação para bedel de costumes e sua truculência preencheram esses 100 dias. No que poderia haver de eventualmente virtuoso — a articulação em favor da reforma da Previdência —, o que se viu foi a mais absoluta desordem. Espero, noto à margem, que propostas lançadas por homens de sua gestão, como a licença para matar contida no tal "pacote anticrime" de Moro, sejam repudiadas ou pelo Parlamento ou pelo Supremo.
São 100 dias apenas. Mas já parecem 1.450.
"Esforce-se, Reinaldo! Encontre ao menos uma coisa boa em Bolsonaro". Nem digo se boa ou ruim… Prefiro trabalhar com o conceito de "melhor", que é relativo e nasce de uma comparação. Então encerro assim: a melhor coisa de Bolsonaro é seu vice, Hamilton Mourão.
Por Reinaldo Azevedo
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