Embora os casos estejam imbricados, são distintos. E conviria desfazer a confusão. A ordem expedida pelo ministro Alexandre de Moraes para que o site "O Antagonista" e a revista digital "Crusoé" retirassem do ar textos referentes a um e-mail vazado para a revista sabe-se lá por quem — ou a origem é o MPF ou é a Polícia Federal — apela a uma ordem de coisas. A investigação sobre ações orquestradas, que têm como alvo o Supremo, apela a outra. Os dois eventos estão metidos no mesmo saco de gatos pardos porque a decisão de Moraes foi tomada justamente no âmbito do inquérito, aberto de ofício, por determinação do presidente do Supremo, Dias Toffoli. Para lembrar: o vazamento se refere a uma declaração, feita pela defesa de Marcelo Odebrecht, com data do dia 3 de abril, respondendo a uma pergunta do MPF sobre quem seria o "amigo do amigo do meu pai", expressão escrita num e-mail, atenção!, de 2007. Era uma referência a Toffoli. O contexto não evidencia, sugere, aponta, acena, indica — escolham o verbo — qualquer ato ilícito. Até porque, convenham, se há coisa que transita faz tempo nos corredores da Lava Jato são as delações de diretores da Odebrecht. Qual o intuito de pinçar, agora, essa frase, encaminhar um pedido de esclarecimento e vazar a resposta contida numa declaração que, segundo a própria Procuradoria Geral da República, não integrava os autos? A resposta parece óbvia. É parte de uma orquestração que busca desmoralizar ministros do Supremo. Não é a única. Ocorre que retirar textos do ar remete sempre ao fantasma da censura.
Moraes deveria levantar interdição para evitar a contaminação
Falemos um pouco a respeito. A Constituição veda a censura prévia. Não foi o caso. Ainda assim, o mau cheiro permanece. Há outros instrumentos menos perigosos e, certamente, mais eficazes para conter e punir abusos. Até porque é de se convir que a decisão de retirar os textos do ar deu uma amplitude a seu conteúdo que antes não tinha. Os que nem haviam tomado conhecimento do caso dele se inteiraram. E com as piores tintas possíveis porque acende na imprensa o farol amarelo do risco de volta da censura, ainda que por outros meios. Desde a minha primeira manifestação a respeito, neste blog, classifiquei a decisão como um erro. Tal erro não pode nos impedir, no entanto, de apontar que o vazamento em questão é mais um de uma indústria que foi montada desde o início da Operação Lava Jato. E, como se sabe, nem Ministério Público Federal nem Polícia Federal se mobilizaram para conter o que é, obviamente, um abuso. Por intermédio desse expediente, elegem-se alvos, interfere-se no resultado de eleições, destroem-se e constroem-se reputações, cria-se, em suma, uma realidade política. Sim, é preciso reconhecer que a parceria entre a Força Tarefa e a imprensa foi e é intensa. Mas se dá de barato que criminoso é o servidor público que vazou o documento sigiloso, não o veículo que publicou seu conteúdo. E concordo com esse ponto de vista. Embora eu não inove no meu próprio pensamento quando afirmo que parcerias dessa natureza devem ser repensadas. A razão é simples: a imprensa séria, que tem compromisso com a verdade e com a ética, não pode se tornar porta-voz de vazadores que têm interesses políticos — entre outros. Até para que não se confunda com iniciativas que até podem ter a aparência de imprensa, mas que, essencialmente, não são. De toda sorte, para que uma coisa não envenene a outra, Alexandre de Moraes deveria levantar a interdição, o que não impedirá que se investigue o vazamento.
Regimento Interno do STF permite, sim, a abertura de inquérito
O Artigo 43 do Regimento Interno do Supremo permite, sim, que seu presidente instaure de ofício um inquérito, inclusive coma designação daquele que dele se encarregará. Lá está escrito: "Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro." Nessa interpretação, entende-se que os ministros, atacados por uma indústria de difamação mais do que evidente, encarnam o próprio tribunal. E a interpretação é absolutamente procedente. O Regimento Interno nada fala a respeito da atuação do Ministério Público Federal, que continuará titular da ação penal quando e se houver uma, mas não detém, como sabe a procuradora Raquel Dodge, o monopólio da investigação. É por isso que, ainda que compreensível em razão das pressões que sofre, é um despropósito que ela dê por encerrada uma investigação que inexiste na PGR. Ao fazê-lo, comportou-se como o Supremo do Supremo. Pior ainda é a declaração de que eventuais provas colhidas no inquérito são nulas. Alexandre de Moraes ignorou a manifestação de Dodge, e o inquérito foi prorrogado por 90 dias.
Escreveu Dodge:
"Registro […] que nenhum elemento de convicção ou prova de natureza cautelar produzida [nesse inquérito] será considerada pelo titular da ação penal […]. Também como consequência do arquivamento, todas as decisões proferidas estão automaticamente prejudicadas (…) A situação é de arquivamento deste inquérito. No sistema penal acusatório estabelecido na Constituição de 1988, o Ministério Público é o titular exclusivo da ação penal, exerce funções penais indelegáveis"
Respondeu Moraes:
"O pleito da procuradora-geral da República não encontra qualquer respaldo legal, além de ser intempestivo [fora do prazo], e, se baseando em premissas absolutamente equivocadas, pretender, inconstitucional e ilegalmente, interpretar o regimento da corte e anular decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal".
ANPR apela a mandado de segurança e a um estranho HC coletivo
E, como se faltassem coisas inéditas nessa história, a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) entrou no próprio STF com um mandado de segurança, com pedido de liminar, para suspender o inquérito determinado por Dias Toffoli. Em outra recurso, um habeas corpus preventivo e coletivo, também com pedido de liminar, pede que se conceda salvo-conduto a todos os membros do MPF, que estariam, assim, desobrigados de prestar depoimentos. Não deixa de ser curioso: se os procuradores da República nada têm a ver com os vazamentos e se não estão envolvidos com as ações criminosas contra o Supremo, qual a razão de ser de um HC coletivo e preventivo? Nem se trata aqui de exercitar a velha máxima do "quem não deve não teme". Convenhamos: não faz sentido, ou não deveria fazer, que os procuradores se vejam como alvos da investigação. De modo não menos incompreensível, a ANPR pede também que seja devolvido todo o material apreendido pelas buscas e apreensões determinadas por Alexandre de Moraes. Procuradores da República, ainda que por meio de seu sindicato, se comportarem como advogados de privados investigados em inquérito é também um marco novo do torto estado de direito do país. A ANPR espera que, por prevenção, os pedidos fiquem com o ministro Edson Fachin, que não costuma contrariar o MPF. É ele o relator de uma ADPF, movida pela Rede Sustentabilidade, para que se levante a interdição aos textos publicados por site e revista digital. O ministro estabeleceu um prazo de cinco dias para que Moraes e a PGR se manifestem.
Como? Simples investigação viola a intimidade de procuradores?
O habeas corpus preventivo e coletivo de autoria da Associação Nacional dos Procuradores da República recorreu àquela que me parece ser uma das mais estranhas argumentações da história dos HCs. Lê-se no Item 51: "Por fim, é necessário destacar que há violação ao direito dos associados da impetrante à privacidade e intimidade, porquanto não se tem muitas notícias, principalmente em razão do fato de o Inquérito nº 4.781, derivado do ato coator, correr em sigilo, sobre eventual prisão, interceptação telefônica, busca e apreensão ou qualquer outra medida a ser determinada em desfavor dos Procuradores da República." Como? O fato de o inquérito correr em sigilo, por si, violaria a intimidade de todos os procuradores porque estariam, então, sujeitos aos procedimentos de inquérito que os doutores conhecem bem, como interceptação telefônica, busca e apreensão ou até prisão? Pergunte-se de novo: por que uma investigação sigilosa de eventuais atos criminosos cometidos contra o Supremo violaria, por princípio, a intimidade de todos os procuradores associados à ANPR?
Por Reinaldo Azevedo
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