quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Treinados para matar



A PM apagou o post em que chamava Thiaguinho de "criminoso". O garoto de 13 anos foi morto a tiros na Cidade de Deus

Não haverá dignidade possível para nossa Polícia Militar enquanto houver agentes treinados não para nos proteger ou reprimir o crime, mas para matar. Adulterar imagens de câmeras. Forjar flagrantes de armas e drogas. Transformar homicídios em autos de resistência. Não são todos os policiais. Claro. Mas os que agem assim se sentem bancados pelos governos estaduais. Imunes. Estimulados pela cultura do tiro, porrada e bomba. Aplaudidos por parte considerável da sociedade. Por quem admite a morte de crianças como “dano colateral” de uma guerra eterna à bandidagem.

Comove demais a foto de Selma Oliveira de Souza, mostrando coleguinhas de futebol de Thiago Menezes aos prantos, no sepultamento do amigo de 13 anos, morto a tiros na Cidade de Deus. É um retrato da perda da inocência. Do choque com a tragédia, tão próxima e precoce. A morte de Thiaguinho já produziu três versões. Era um “criminoso” que morreu com arma na mão. Era só um carona na garupa de uma moto de onde veio um disparo, e caiu morto. E a terceira versão, da família: foi execução, Thiaguinho já caído ao chão. Os PMs apagaram o post em que chamavam o adolescente de criminoso. Eles não levavam câmeras nos uniformes.

Câmeras ajudam o PM a pensar duas vezes antes de atirar. Mas não bastam. Para evitar esse massacre – 51 mortos em chacinas no Rio, São Paulo e Bahia em uma semana –, precisamos mudar radicalmente o conceito das forças de segurança. Porque o nome é “segurança”. E não o oposto. Não pode ser “medo”. Num dia nada remoto, no Rio de Janeiro, tentou-se dar outro rumo a nossa segurança pública. Cheguei a assistir a premiações, com bônus em dinheiro, de policiais com menor índice de letalidade. O secretário de Segurança era Beltrame.

Foi criado em 2009 o Sistema Integrado de Metas. Lembro quando Beltrame me disse: “Estou focando em três pilares. Tecnologia, capacitação e educação da tropa com bônus para redução de homicídios, e punição a desvios de conduta e corrupção”. Em quatro anos, mil policiais foram expulsos por homicídio. Em 2019, o governador Wilson-mira-na-cabecinha-Witzel retirou das metas a redução de mortes cometidas por policiais.

Não consigo entender que os governos estaduais não transformem em prioridade o controle de suas polícias. Perdem a mão, atiram no pé. São fracos e covardes. Os governadores temem se incompatibilizar com seus policiais e com uma parcela de seus eleitores. Mas mortes como a de Thiaguinho não rendem votos. Nenhum voto. Não é possível, em sã consciência.

A truculência policial é cúmplice das milícias. E é crime. Vejam como os amiguinhos de milicianos estão sendo obrigados a prestar contas com a Justiça. Meu colega Pablo Ortellado escreveu muito bem no GLOBO: polícia não pode agir como gangue. E se os estados continuarem omissos, que o presidente Lula aja. Porque o Brasil chora mortes de inocentes. Famílias são destruídas.

“A ficha ainda não caiu. A gente não quer aqui sentimento de vingança contra os policiais. A justiça, a gente sabe que é falha. A única que funciona é a de Deus, mas a gente quer pelo menos que tirem essa imagem, que o Thiaguinho estava com arma. É mentira. É uma crueldade fazer isso com a criança. Ele não andava com arma, não andava fazendo furto, usando droga, bebendo, não era nada disso. A vida do Thiago era o futebol”, disse o tio dele, Hamilton.

Conversei com Selma, 56 anos, a fotógrafa do sepultamento. Ela trabalha para o jornal Voz das Comunidades e mora no Complexo do Alemão desde os quatro anos. "Você tem filhos, Selma?"

"Não. Desisti de ser mãe. Por causa da violência na comunidade. Não queria ficar angustiada, pensando se meu filho ia voltar vivo pra casa no fim do dia. Ou ser morto a tiros. Não queria sofrer como a mãe do Thiaguinho".

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