sábado, 8 de julho de 2023

Conheça o bastidor da decisão de Gilmar que trancou o inquérito contra Lira



Data: 25 de junho de 2023. Local: Parque Eduardo VII, bar Praia no Parque, Lisboa, capital de Portugal. Rodeado de amigos, Arthur Lira celebrava seu aniversário de 54 anos. Entre os convidados, Gilmar Mendes. Horas antes, em Brasília, ganhara as manchetes notícia incômoda para o aniversariante. A Polícia Federal enviara ao Supremo Tribunal Federal investigação sobre o caso dos kits de robótica adquiridos com verbas do orçamento secreto pelo Ministério da Educação. No miolo do processo, havia uma lista de pagamentos associados ao nome "Arthur".

Data: 6 de julho de 2023. Local: Câmara dos Deputados. Arthur Lira articulava a votação da estratégica emenda constitucional da reforma tributária. O ritmo era de toque de caixa. Nos bastidores, fervilhavam comentários vinculando a pressa a um desejo inconfessado do presidente da Câmara de obter um fato positivo, estrepitoso o bastante para abafar os rumores sobre a lista com os repasses obscuros de R$ 834 mil anotados no documento apreendido pela PF no carro do motorista de Luciano Cavalcante, um ex-assessor de Lira. Desse total, pelo menos R$ 650 mil referiam-se a despesas vinculadas a "Arthur".

Horas antes da votação que resultaria na aprovação histórica da proposta de reforma tributária, Arthur Lira recebeu uma notícia tranquilizadora. Gilmar Mendes, o ministro do Supremo Tribunal Federal que ornamentara com sua presença o aniversário celebrado 12 dias antes em Lisboa, expedira uma liminar sustando o inquérito sobre a fraude na compra dos kits de robótica. O despacho de Gilmar não se restringiu a Lira. Ordenou a paralisação de todos os procedimentos relacionados ao caso, incluindo as quebras de sigilo de suspeitos que não dispõem do privilegiado foro da Suprema Corte.

Com a alma leve, Lira foi ao plenário da Câmara para presidir a votação da reforma do sistema de cobrança de impostos. O ambiente estava impregnado por um tilintar de verbas. Lula autorizara o governo a liberar para parlamentares governistas e oposicionistas R$ 7,2 bilhões em emendas orçamentárias, algumas delas remanescentes do antigo orçamento secreto. Azeitada pelos recursos públicos, a votação resultou numa aprovação consagradora para Lira. Eram necessários 308 votos. O placar do primeiro turno foi de 382 votos a 118. No segundo turno, o painel eletrônico da Câmara registrou 375 a 113.

Lira foi às férias do meio do ano com pose de vitorioso. Pesquisa realizada pela Quaest revelou que a aprovação da reforma rendeu ao ministro Fernando Haddad, a Arthur Lira e a Lula mais menções positivas do que negativas no Twitter, Facebook e Instagram. No polo oposto, com uma saraivada de menções negativas, apareceu Bolsonaro, o ex-provedor das emendas secretas que financiaram os kits de robótica e outras anomalias. Lira, o segundo mais bem-posto na sondagem da Quaest, colecionou 63% de menções positivas, contra 37% de referências negativas. Haddad, 78% a 22%. Lula, 58% a 42%. Bolsonaro amargou 71% de menções desairosas e apenas 29% de referências positivas.

Líderes partidários compartilharam informações sobre o roteiro de férias do soberano da Câmara. Segundo os caciques partidários, Lira embarcará com a família num cruzeiro marítimo que partirá da Flórida, nos Estados Unidos, na próxima segunda-feira. O chamariz da embarcação é o cantor Wesley Safadão. O itinerário inclui a passagem por uma "ilha exclusiva do Safadão nas Bahamas". Nenhuma atração proporcionará a Lira maior satisfação do que o despacho de Gilmar Mendes. Nele, o decano do Supremo absorveu todas as teses esgrimidas pela defesa.

Os advogados de Lira sustentaram que decisões proferidas na 2ª Vara Federal de Alagoas, onde corre o inquérito sobre os kits de robótica enviados a escolas alagoanas que não dispunham de infraestrutura básica, violaram a competência da Suprema Corte, responsável por julgar e processar detentores de mandatos de deputado. Nessa versão, a Polícia Federal já suspeitava do envolvimento de Lira quando abriu o inquérito. E as investigações não poderiam ter sido deflagradas senão com autorização prévia do Supremo.

Em seu despacho, Gilmar anotou ter identificado "inúmeras circunstâncias indicativas de prováveis ilegalidades praticadas" no curso do processo. Escorou sua decisão no argumento segundo o qual havia um "possível risco de dano irreparável e possibilidade de deferimento de medidas invasivas por autoridades manifestamente incompetentes". Por isso, mandou paralisar todas as apurações, inclusive as que se referem aos investigados que não dispõe de prerrogativa de foro, até que o Supremo decida sobre a legalidade dos procedimentos autorizados pela vara federal alagoana.

Mal comparando, se a investigação fosse um jogo de futebol, o juiz teria paralisado a partida por identificar o risco de gol do time dos investigadores da Polícia Federal contra o time dos encrencados. Gilmar escreveu: "No presente caso, basta um rápido lançar de olhos sobre os documentos que instruíram a portaria de deflagração do inquérito policial para concluir que, desde o início das investigações, a hipótese investigativa aventada pela Polícia Federal claramente apontava para a participação do reclamante [Lira] em suposta malversação de verba pública do FNDE", o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

Para Gilmar, "o evento chega a ser escandaloso, na medida em que, muito embora a portaria lavrada pelo delegado de Polícia Federal esteja acompanhada de reportagens jornalísticas que claramente insinuam o envolvimento do parlamentar com as empresas sob investigação, os autos do inquérito policial não observaram as regras de prerrogativa de foro".

Na origem das suspeitas sobre os kits de robótica está uma reportagem publicada pela Folha em abril do ano passado. Nela, revelou-se que os contratos para a compra dos kits foram celebrados por uma empresa chamada Megalic, pertencente a aliados de Lira. A investigação foi deflagrada contra a empresa e seus gestores, não contra o presidente da Câmara. Quando o nome "Arthur" emergiu em documentos apreendidos numa batida policial de busca e apreensão, o caso foi remetido ao Supremo.

Gilmar realçou em sua decisão liminar que a portaria que instaurou o inquérito da PF sem autorização do Supremo sugere a ocultação do nome de Lira, mesmo que a hipótese da investigação "claramente apontasse para o envolvimento do mesmo nos atos narrados pelo delegado da PF", pois as diligências autorizadas pela 2ª Vara Federal de Alagoas tinham como alvo servidores comissionados vinculados ao presidente da Câmara.

Gilmar concluiu: "Não há dúvidas, portanto, de que o reclamante [Lira] figurava como elemento central das investigações promovidas pela Superintendência de Polícia Federal em Alagoas, sem que o inquérito policial tenha observado as formalidades exigidas pela jurisprudência desta Corte". Para o ministro, houve "uma tentativa nada ortodoxa de investigação de autoridade detentora de prerrogativa de foro ao arrepio das formalidades constitucionais".

O decano pintou o quadro com tintas fortes: "O evento chega a ser escandaloso, na medida em que, muito embora a portaria lavrada pelo delegado de Polícia Federal esteja acompanhada de reportagens jornalísticas que claramente insinuam o envolvimento do parlamentar com as empresas sob investigação, os autos do inquérito policial não observaram as regras de prerrogativa de foro".

Um outro ministro do Supremo, ouvido sob a condição do anonimato, ponderou: "Se a Polícia Federal tivesse requisitado ao Supremo abertura de inquérito com base exclusivamente em recortes de jornal, o caso teria sido arquivado no nascedouro por insubsistência do pedido. Do ponto de vista estritamente jurídico, notícias da imprensa são imprestáveis. Desacompanhadas de apurações policiais que apontem indícios eloquentes de envolvimento de uma autoridade com prerrogativa de foro em malfeitos, meras notícias jamais ensejariam a abertura de um inquérito."

Arthur Lira não festejou seu aniversário em Lisboa por acaso. Ele voara para a capital portuguesa para participar de um Fórum Jurídico de três dias promovido na cidade pelo IDP, uma faculdade de Direito fundada por Gilmar. Lira foi um dos palestrantes do evento. Nas pegadas das ameaças antidemocráticas que desaguaram no 8 de janeiro, o presidente da Câmara discorreu sobre o "Estado Democrático de Direito e Defesa das Instituições". Exibiu-se em Lisboa como se nada tivesse sido descoberto sobre o "Arthur" da lista apreendida pela Polícia Federal.

Até que o Supremo delibere sobre o mérito da liminar expedida pelo patrono do encontro de Lisboa, o estado de Lira é de absoluta tranquilidade. A instituição presidida por ele acaba de presentear a sociedade brasileira com uma reforma tributária ansiada há três décadas. Está preservado o direito de defesa do "Arthur" pilhado numa lista de repasses suspeitos. Mas Lira não cogita exercê-lo. Espera que o inquérito sobre o caso dos kits de robótica seja enterrado por questões processuais.

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