
A Semana Santa é uma celebração que, a exemplo do Natal, tem Jesus Cristo por figura principal. No entanto, nesse feriado, o protagonismo do enredo religioso é dividido, por contraste, com o vilão Judas Iscariotes, o apóstolo que traiu Cristo por 30 dinheiros e que por isso há dois mil anos é queimado pelos cristãos.
Faço aqui um breve desvio. Na perspectiva formal da técnica narrativa da história de Jesus, Judas cumpre uma missão singular e fundamental, que é a de conferir uma carga dramática adicional e um sentido aos eventos finais da vida do Salvador. Sem a fraqueza de Judas não haveria a paixão e o sacrifício de Cristo, peças fundamentais para a estruturação da liturgia e teologia católica. Sem o episódio da traição, Jesus não teria como oferecer a Deus o seu martírio pela salvação dos homens.
Judas poderia ter escolhido a lealdade e o caminho da fé? Pelo princípio do livre arbítrio, sim. Mas se o fizesse, como ficaria a previsão de Jesus, pela qual um dos seus que ali estavam o entregaria aos romanos? De qualquer forma, coube a Judas realizar a profecia, para depois então, atormentado, cometer o suicídio. No fim, não deixa de ser paradoxal: sem Judas não haveria Semana Santa.
Deixando essas ponderações de lado e voltando ao roteiro inicial do raciocínio, fico a pensar no valor simbólico de Judas em nossa cultura atual, especialmente no campo da política, onde a traição é quase uma regra.
Se no plano religioso Judas encarna o repúdio ao que é vil e desonesto, no plano material da vida secular essa aversão não se incorporou, pelo menos entre nós brasileiros, como um valor moral de amplo espectro, capaz de atuar ativamente sobre outras esferas da vida comum. Na verdade, costumamos ser bem tolerantes com certos vícios, alguns dos quais apelidamos carinhosamente de “jeitinho”.
Quantos traidores não estão por aí alegres e faceiros, muito bem colocados nos mais altos postos da República, do Estado e cidades, vendendo diariamente a confiança que lhes fora depositada pelos eleitores? No Congresso, por exemplo, deputados diretamente envolvidos em escândalos de fraudes e desvios de verbas destinadas à população mais pobre não apenas continuam a ser eleitos e reeleitos, mas gozam de prestígio incomum. Em Brasília, uma figura basta para personalizar, como síntese, a apoteose de crimes que prospera na vida pública nacional: Renan Calheiros. Não é o único, mas é o mais bem sucedido.
Existem ainda as traições de valor intelectual e ideológico, perfeitamente representadas na pessoa do ex-presidente Lula da Silva, o socialista (construção forçada) que, uma vez eleito, aderiu a tudo quanto criticava, de questões econômicas a condutas éticas. Ao contrário da saga cristã, a traição faz bem aos políticos brasileiros.
Não podemos generalizar, claro, mas são muitos os que agem assim sem que nada façamos para queimá-los na fogueira do repúdio ao que é imoral. Pelo contrário, não é incomum a crucificação dos mais honestos, nessa terra de traidores, romanos e os fariseus.
A comparação entre o apóstolo caído e os farsantes de hoje é uma injustiça com o primeiro. É que com seu ato deplorável, Judas Iscariotes acabou por contribuir, ainda que por caminho torto, com a consolidação da doutrina cristã, e uma vez arrependido do mal que praticou, penitenciou a si mesmo com a mais dura das penas. Já da roubalheira de verbas públicas que se fez cultura nacional, nada de positivo se aproveita ou se levanta, nem mesmo a indignação de quem é roubado. Não há arrependimentos e muito menos punições exemplares. Entre nós, não há redentores.