Em pouco mais de três anos de atividade, a Operação Lava Jato avançou pelos meandros do sofisticado esquema de corrupção de autoridades públicas, executivos e empreiteiras na Petrobras usando e abusando de um jovem recurso no ordenamento jurídico brasileiro, a delação premiada. Instituída no país apenas em 2013, a delação é inspirada em uma prática da Justiça americana, batizada de plea bargain, que consiste em confessar crimes cometidos, entregar pessoas que estejam acima de si na organização criminosa, apresentar caminhos de prova e, em troca, obter o relaxamento da pena.
A lógica é boa, uma vez que crimes de corrupção, em geral, são acobertados por complexas operações financeiras e praticados por pessoas com influência política e econômica. Ao criar a figura do delator, a legislação permite que seja puxado o fio que leva aos demais crimes e membros de um grupo criminoso.
No entanto, nem tudo é perfeito. Afinal, delatores podem mentir, omitir ou, simplesmente, não conseguir provar o que têm a dizer. A regra brasileira exige que, ao acertar um acordo de colaboração, o acusado confesse todos os delitos que cometeu. É por esse viés, o da omissão deliberada, que o caso-símbolo das delações contestadas, a colaboração dos executivos da JBS pode acabar sendo invalidada. Ao menos dois dos colaboradores, Joesley Batista e Ricardo Saud, já tiveram os acordos rescindidos, segundo o procurador-geral Rodrigo Janot.
A dificuldade para o amadurecimento do instrumento da delação neste momento no país é saber o que fazer quando irregularidades são descobertas depois que o acordo já foi firmado pelo Ministério Público e homologado pela Justiça. No caso dos irmãos Batista, novos áudios e mensagens eletrônicas sugerem uma nova gama de crimes não confessados, da assessoria indevida de um procurador da República até uma possível compra de sentenças judiciais em tribunais superiores.
Com os novos materiais da JBS, a Lava Jato já tem ao menos cinco abacaxis desse tipo para lidar. Também estão na corda bamba as delações da empreiteira Odebrecht, dos ex-senadores Delcídio do Amaral e Sérgio Machado e do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Para o juiz Sergio Moro, responsável pela operação na primeira instância, a solução é simples: ele anulou um acordo semelhante com o doleiro Alberto Yousseff firmado em 2006, no âmbito do caso envovlendo o Banestado.
No primeiro acerto autorizado por Moro, um defensor do uso das delações, Yousseff estaria proibido de voltar a trabalhar como o operador financeiro e não poderia delinquir novamente. A nova atuação criminosa do doleiro foi descoberta nos primórdios da Lava Jato, quando ficou claro que ele era um dos intermediários dos valores do esquema na estatal. Ele voltou para a cadeia, mas saiu novamente – fechou outra delação, apesar de ter sido desleal com a Justiça na primeira oportunidade, dessa vez dentro da apuração do esquema na Petrobras. Atualmente, está em regime aberto.
Os conflitos em torno do futuro da colaboração premiada da JBS reforçaram o argumento de políticos citados em outras delações e colocaram em jogo a própria credibilidade do mecanismo para investigações criminais. Em fala a jornalistas nesta quarta-feira, em Curitiba, a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) afirmou que “se a delação da JBS foi combinada, o que garante que as outras não foram?”. Para Gleisi, presidente nacional do PT, as delações e condenações resultantes destas deveriam ser invalidadas.
Responsável pela Operação Lava Jato na primeira instância, o juiz Sergio Moro defende uso de delações(Evaristo Sá/AFP) |
Se a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmarem a ameaça e anularem completamente o acordo da JBS, qual será o recado dado? As colaborações ganharão força, com um “desestímulo à mentira”, já que acarretaria a perda dos benefícios? Ou serão desmoralizadas, uma vez que potenciais delatores deixariam de confiar na Justiça e suas acusações teriam menos impacto na opinião pública, já que estariam tão passíveis de contestação?
Outro ponto diz respeito às provas. Apesar de os acordos contarem com cláusulas que as protegeriam de eventuais descumprimentos, há incertezas, principalmente a respeito das provas testemunhais, os depoimentos. Enquanto as autoridades da Justiça brasileira se esforçam para resolver esse quebra-cabeça, VEJA relembra abaixo cinco casos célebres de delações contestadas – judicial ou moralmente.
1) JBS
O acordo de delação premiada fechado pela PGR com a JBS foi coberto de críticas e controvérsias desde o primeiro dia, por conferir aos colaboradores – os sócios, irmãos Joesley e Wesley Batista, além de cinco executivos – o benefício da imunidade total contra processos sobre fatos passados. Janot veio a público sucessivas vezes para defender o acerto, alegando que o material entregue pelos delatores era grave e dizia respeito a crimes ainda em andamento.
As gravações de diálogos no mínimo constrangedores com o presidente Michel Temer (PMDB) e o senador Aécio Neves (PSDB-MG), somadas aos nomes de mais de 1.800 políticos que teriam recebido propina, foram o suficiente para sustentar o acordo da empresa até o começo da semana passada. No último dia 4, o mesmo Janot convocou uma entrevista e anunciou que um novo áudio deixava claro que os delatores haviam omitido fatos – em especial, essa espécie de “assessoria” informal que teria sido prestada pelo ex-procurador Marcelo Miller quando ainda estava nas fileiras do Ministério Público.
Ricardo Saud e Joesley Batista: delatores tiveram acordos rescindidos, segundo Rodrigo Janot (L. Adolfo/Futura Press; Vanessa Carvalho/AFP) |
De lá para cá, o acordo furou a concorrência e foi o primeiro a efetivamente enfrentar um processo de revisão. A investigação urgente de cinco dias resultou em um pedido de suspensão dos benefícios e de prisão de dois delatores, Joesley e o diretor de Relações Institucionais Ricardo Saud, além da inclusão de um novo personagem, Miller, no rol de investigados. Relator da Operação Lava Jato, o ministro Edson Fachin concordou com a suspensão da imunidade e decretou a prisão temporária de Joesley e Saud.
Dias depois, Wesley Batista também foi preso, acusado de usar informações privilegiadas a respeito da delação do grupo para reduzir o seu impacto financeiro sobre o caixa do grupo familiar. Sobre a anulação definitiva do acordo, a decisão caberá ao Supremo, que anteriormente se reuniu e decidiu que colaborações seriam mantidas até que houvesse a conclusão dos processos e fosse possível dizer se foram efetivas. No entanto, o posicionamento da PGR de que parte dos delatores da JBS rompeu desde já a cláusula de omitir informações combinado com a pressão da opinião pública pode levar à anulação da delação.
2) Delcídio do Amaral
O caso da empresa frigorífica, no entanto, não foi o primeiro que teve o Ministério Público Federal (MPF) contrário à permanência dos benefícios para o delator. O senador cassado Delcídio do Amaral (ex-PT-MS) foi preso, em novembro de 2015, quando uma gravação feita por Bernardo Cerveró o comprometeu com a compra do silêncio do pai dele, o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. Preso e sem mandato, Delcídio delatou e acusou o PT, em especial o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de ter ordenado que ele comprasse o silêncio de Nestor por meio de Bernardo.
Diferentemente dos irmãos Batista, Delcídio não é acusado de omitir, mas de mentir ou, ao menos, não conseguir provar o que disse. Concluída a investigação, o Ministério Público pediu à Justiça Federal do Distrito Federal que absolva Lula e o banqueiro André Esteves no processo em que são réus com base nas acusações do ex-senador. Responsável pelo parecer, o procurador Ivan Cláudio Marx também pediu que Delcídio perca seus benefícios.
O ex-senador Delcídio do Amaral, cuja delação acumula problemas (Adriano Machado/Reuters) |
Na peça, o procurador diz que, sem as vantagens obtidas pela delação, o ex-senador pode ter que responder pela sentença total em caso de condenação e “também ficará sujeito a responder por falsa imputação de crime”. A sentença sobre o caso está na 10ª Vara Federal de Brasília, e uma eventual absolvição do ex-presidente Lula e do banqueiro colocaria Delcídio muito mais perto de voltar ao regime fechado
3) Sérgio Machado
Próximo ao PSDB e ao PMDB, o ex-senador e ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado foi o responsável pelo primeiro escândalo do governo Temer quando, em maio de 2016, entregou ao MPF uma gravação em que o então ministro do Planejamento Romero Jucá (PMDB) falava em “estancar a sangria” da Lava Jato. Em outros áudios, Machado comprometeu mais figuras, como o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), o ex-senador José Sarney (PMDB-AP) e o então advogado-geral da União, Fabiano Silveira.
Machado: relatório da PF diz que ele tentou instigar declarações que incriminassem políticos do PMDB (Tasso Marcelo/Estadão Conteúdo) |
O impacto político foi grande e tanto Jucá quanto Silveira deixaram os cargos no governo Temer, diante da acusação de Machado, que, em delação, afirmou que os políticos conspiravam contra as investigações. As afirmações do ex-presidente da Transpetro foram barradas ainda antes que as de Delcídio: o relatório da Polícia Federal contestou a versão e defendeu que Machado não foi capaz de provar os fatos que relatou. Além do mais, as gravações, único indício concreto dos relatos do colaborador, mostram ele em um “caráter instigador” para obter declarações que incriminassem os interlocutores.
Até agora, o relatório da delegada Graziela Machado não provocou nenhum movimento para anular a delação de Machado, que suscitou acusações sobre outros delitos. Renan, Jucá e Sarney, além dos também senadores peemedebistas Garibaldi Alves Filho (RN) e Valdir Raupp (RO), foram denunciados com base na colaboração premiada do ex-presidente da Transpetro. No entanto, o MPF pediu o arquivamento das acusações de obstrução e Justiça contra Jucá, Renan e Sarney.
4) Paulo Roberto Costa
O primeiro executivo da Petrobras a falar no esquema de corrupção descoberto na estatal foi o ex-diretor de Abastecimento da estatal, Paulo Roberto Costa, que teve papel decisivo para que a força-tarefa da Lava Jato entendesse o que ocorria. Apesar de ter gerado resultados tão efetivos que permitiram que hoje esteja livre e preste apenas serviços comunitários, há duas contestações mais acentuadas em relação aos fatos declarados por ele: há incongruências entre valores e fatos relatados por ele e por familiares, acusados de terem retirado provas da empresa da família, a Costa Global, horas antes de os investigadores cumprirem um mandado de busca e apreensão no local. Com base nessas diferenças, o procurador Deltan Dallagnol, da força-tarefa da operação, decidiu pedir a suspensão dos benefícios a Paulo Roberto Costa.
Paulo Roberto Costa: incongruências e novos documentos ameaçam delação de ex-diretor (Paulo Lisboa/Brazil Photo Press/Agência o Globo) |
Segundo a coluna Radar, outro ponto da colaboração do ex-diretor que está na mira da Justiça é o relato feito sobre o ex-senador Sérgio Guerra (PSDB-PE), que faleceu em março de 2014. Na colaboração, Costa afirmou que Guerra recebeu 10 milhões de reais em propina para enterrar uma CPI sobre a Petrobras em 2009.
A extorsão, afirma o ex-diretor, teria vindo no âmbito de descobertas de fraudes nas obras da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Novos documentos, hoje em posse do STF, indicariam que, na verdade, Guerra e um grupo de senadores do DEM denunciaram as irregularidades na estatal à PGR nada menos que 19 vezes, mas nada foi feito. A tendência é considerar que o ex-diretor mentiu sobre o falecido senador, que presidiu o PSDB e foi o primeiro tucano a ter o nome envolvido na Lava Jato.
5) Odebrecht
Apelidada de “delação do fim do mundo”, o acordo de colaboração coletivo de 77 executivos e ex-executivos da Odebrecht produziu acusações contra uma vasta gama de autoridades políticas do país. No entanto, pouco mais de seis meses depois, muitas destas afirmações já foram arquivadas pela Justiça.
São os casos das citações aos governadores do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB) e do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB). O chefe do governo de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), também teve uma sindicância arquivada. A pedido de Rodrigo Janot, o relator da Lava Jato no Supremo, ministro Edson Fachin, decidiu arquivar as acusações da Odebrecht contra os ministros da Secretaria de Governo, Antonio Imbassahy (PSDB), e da Defesa, Raul Jungmann (PPS).
Odebrecht: parte das acusações do grupo contra políticos foi arquivada pela Justiça (Vagner Rosário/VEJA.com) |
Também deixaram de ser investigados os senadores Romário Faria (Podemos-RJ) e Marta Suplicy (PMDB-SP) e os deputados Benito Gama (PTB-BA), Claudio Cajado (DEM-BA), Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), Orlando Silva (PCdoB-SP), Paulo Maluf (PP-SP) e Roberto Freire (PPS-SP). Dois arquivamentos ainda estão pendentes de análise: um sobre o senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), a ser decidido por Fachin, e outro sobre o senador José Agripino (DEM-RN), que ainda será redistribuído, uma vez que o relator considerou que não estava relacionado às investigações da Lava Jato.
Mesmo com o número – elevado – de políticos que já tiveram suas acusações retiradas, ainda não há nenhum sinal de uma anulação da delação. Com a exceção da polêmica JBS, que provocou fortes reações da opinião pública, os acordos de colaboração, até agora, não resultaram em anulações. Resta agora saber, a partir do caso da empresa de Joesley Batista, a diretriz que será adotada pelo Supremo e que pode ser um primeiro sinal de qual o destino que casos semelhantes terão.
Por: Veja.com
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