Josias de Souza
O condomínio partidário que dá suporte congressual ao governo de Dilma Rousseff entrou em colapso na noite passada. Um dia depois de encontrar-se em segredo com Lula, de quem ouviu o conselho de estreitar sua inimizade com os aliados, a presidente sofreu duas derrotas constrangedoras no Congresso. Perdeu porque seus aliados quiseram que ela perdesse. Vai abaixo um resumo do estrago produzido pelo trator desgovernado:
“Algo está errado aqui”, algo está de cabeça pra baixo.” O discurso do deputado José Guimarães, líder do PT, não deixava dúvidas. A noite não era de Dilma Rousseff no plenário da Câmara. Na Casa ao lado, quase que simultaneamente, o senador Roberto Requião, expoente do PMDB, arrancava aplausos das galerias, apinhadas de funcionários demitidos dos Correios: “Fico com os trabalhadores, não com o Partido dos Trabalhadores”. Dilma estava em apuros também no Senado.
Quando parecia que tudo de ruim já havia acontecido —o enterro do plebiscito na véspera, as vaias dos prefeitos à presidente pela manhã, o dólar alcançando a maior cotação desde 2009, o BC elevando novamente os juros— surgia um curto-circuito no Legislativo. Um não, dois. Aliados do Planalto uniram-se à oposição para emboscar a presidente na Câmara e no Senado. Tudo numa única noite.
“Quero discutir quem é da base e quem não é”, vociferou o petista Guimarães do alto da tribuna. “Quero discutir quem tem cargo no governo e quem não tem cargo no governo.” Para estupefação de todos, o líder do partido de Dilma desnudava o governo em público. Tratava diante dos olhos da TV Câmara de um assunto só sussurrado à sombra: o velho e bom toma-lá-dá-cá. “Quero nitidez política. Faço isso com todo o risco. Mas tenho a responsabilidade como líder do PT.”
Os deputados votavam a destinação dos royalties petrolíferos à educação e à saúde. Manuseavam duas versões do projeto. Dilma preferia o texto que já havia passado pela Câmara e que o Senado “aperfeiçoara”. Prevaleceu a peça escrita por André Figueiredo, líder do governista PDT. O texto original da Câmara, abominado pela presidente, foi 99% reconstituído. Impõe ao Tesouro uma conta adicional de R$ 170 bilhões.
O líder Guimarães, que já havia exibido desnudado a aliança, expondo-lhe o cancalhar de vidro, ateou fogo, por assim dizer, às vestes governistas. “Não é justo. Quem é governo tem ônus e bônus. Não pode ter bônus de um lado sem ter ônus do outro.” Líder do DEM, Ronaldo Caiado muniu-se de um spray de gasolina: “Chantagem, nessa hora, não!” Miro Teixeira, vice-líder do PDT, também correu ao microfone: “Que bônus são esses? Bônus de quem? Nós aqui não conhecemos isso, não senhor.”
Guimarães não se deu por achado. Parecia decidido a levar o strep-tease político às últimas inconsequências: “Vamos rediscutir isso. Quero, por exemplo, rediscutir a nossa relação com o PDT, com o PSD… Quero rediscutir isso tudo até para estabelecer uma nitidez política aqui.” Nunca antes na história do Parlamento as coisas estiveram tão nítidas. Os aliados de Dilma tomaram lá e não deram cá, eis o miolo da ‘DR’ coordenada pelo deputado Guimarães.
Corta para o Senado. Zoom no rosto do petista Humberto Costa. Ex-ministro de Lula, ex-líder do PT no Senado, atual vice-líder da legenda de Dilma, o senador esgoelava-se no microfone. Oferecia ao plenário e aos expectadores da TV Senado uma cena inusitada. Ele cobrava coerência da oposição, sempre tão crítica em relação à flacidez fiscal do governos “perdulário” de Dilma.
“Sei que isso vai passar, vai ser votado e aprovado”, disse Humberto, referindo-se ao projeto sob análise. “Mas quero deixar registrado aqui a minha posição. Faço isso para que, quando forem lá à tribuna falar de disciplina fiscal, falar de gastos públicos, falar que governo só faz aumentar o custeio, que não faz investimento… Eu quero olhar aqui de baixo para cada um deles.”
Humberto Costa guerreava contra um projeto que o Planalto considera tóxico. Concede anistia a ex-funcionários dos Correios demitidos por participar de greves. O enredo seria corriqueiro —um senador do governo protegendo as arcas do Tesouro contra um ataque inimigo— não fosse por um detalhe. Maria do Rosário, eis o nome do detalhe. É a autora da proposta contra a qual Humberto guerreava.
Maria do Rosário é deputada do PT gaúcho. Licenciou-se da Câmara para ocupar o posto de ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Sim, é isso mesmo. Você não leu errado. O PT do Senado cobrava da oposição que, em nome da coerência, ajudasse o governo a derrotar um projeto urdido pelo PT da Câmara.
Wellington Dias, ex-governador do Piauí e líder da bancada de senadores do PT, injetou um número e uma cifra no roteiro. Pelas contas do governo, informou Wellington, a proposta da correligionária Rosário devolverá à folha dos Correios algo como 5,6 mil trabalhadores. Ao custo de R$ 1,062 bilhão. Humberto costa dramatizou a comédia: “Imagina se, agora, todos os trabalhadores que foram demitidos sem justa causa da Petrobras, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica, imagina se todos eles fossem demandar um retorno…”
O senador tucano Cássio Cunha Lima, ex-governador da Paraíba, cochichou uma provocação na orelha esquerda de Humberto, que reagiu: “Pouco me interessa, senador Cássio, quem apresentou essa proposta. Pouco importa se é do PT. É esse o critério que Vossa Excelência utiliza para votar? Essa é a responsabilidade que nós temos aqui no Senado?”
Líder do PSDB, o senador Aloysio Nunes Ferreira encheu o peito como uma segunda barriga e foi ao microfone. Acabara de receber delegação do líder do DEM, José Agripino Maia, para falar em nome de toda a oposição. Ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso, Aloysio fez lembrar o ex-PT, aquela legenda que, na oposição, tratava a administração tucana a vassouradas.
“Vá varrer primeiro diante da sua própria porta”, disse o tucano Aloysio ao petista Humberto. Ao cobrar coerência da oposição, o colega “atirou contra os seus próprios correligionários da base do governo que aqui se pronunciaram a favor do projeto”, fustigou Aloysio. Ele enfileirou as legendas governistas que haviam encaminhado, sob calorosos aplausos das galerias, o voto a favor da proposta: PMDB, PSB, PDT, PP…” Sem contar o petista Paulo Paim, que discursara a favor.
Estava claro que Dilma, hoje 27 pontos percentuais menos popular do que há quatro semanas, tornara-se uma presa fácil no Senado. E a culpa não era da oposição, em franca minoria. “Que história é essa?”, indagou Aloysio, escalando sua retórica sobre Humberto. “Quem é o autor do projeto? É a ministra Maria do Rosário, do PT. Na Câmara, esse projeto foi aprovado tendo como relator o deputado Carlos Santana. Acaso é do PSDB ou do DEM? Não, é do PT. Acaso o senador Paim é membro da oposição?”
Observado por Aécio Neves, o presidenciável do PSDB, Humberto Costa atreveu-se: “Só tem uma coisa que me deixa tranquilo. Se a oposição tivesse convicção de que poderia ganhar a eleição no ano que vem, certamente não estaria votando dessa maneira. Teria preocupação com 2015. A presidenta Dilma vai se reeleger.”
E Aloysio: “Meu amigo Humberto nos acusa de irresponsabilidade fiscal. Será, então, que o PT, quando aprovou esse projeto na Câmara em 2007, achava que iria perder as eleições de 2010?” Confortável no papel de neopetistas, oposicionistas mais realistas do que o ex-PT, os tucanos esfregaram no nariz do petismo um projeto que havia sido aprovado mais cedo.
Contra os votos da oposição, o bloco governista aprovara um projeto de resolução no qual Dilma perdoou e refinanciou uma dívida de US$ 352,6 milhões do Congo. O perdão somará US$ 278,6 milhões. O restante será refinanciado num prazo impossível de ser enxergado a olho nu. “Dilma quer beneficiar ditadores, governos corruptos que têm a mesma prática do governo daqui, de proteger mensaleiros. Estão acostumados a esconder coisas para fazer a gente de bobo e idiota”, chiou o senador Jarbas Vasconcelos, dissidente do PMDB.
Vice-líder do PSDB, Alvaro Dias aditou: “O governo do PT está fazendo generosidade com o chapéu do povo brasileiro a ditaduras sangrentas e corruptas, que esmagam sua população, com denúncias de lavagem de dinheiro no nosso país. Com isso, abre perspectiva para o BNDES continuar oferecendo empréstimos a essas nações, o que mais grave.” Aloysio Nunes insinuou que os novos negócios beneficiarão empresas que têm Lula como garoto-propaganda.
O líder ‘demo’ Agripino Maia realçou que, antes de socorrer os pobres da África, Dilma deveria estender a mão aos flagelados do Nordeste brasileiro, às voltas com a pior seca dos últimos 50 anos. Inspirado nesse debate, o senador Ivo Cassol, do governista PP, acionou o seu linguajar rude para encurtar a discussão sobre a proposta de anistia aos demitidos dos Correios.
“Já que o próprio governo foi tão bozinho pra dar anistia pro Congo, país corrupto e ditador, vamos acabar com isso e votar. Já está definido. Foi o governo que preparou isso lá no passado. Tá colhendo os frutos agora. Não vamos buscar bodes expiatórios na oposição. Deixa isso pro ano que vem. Em 2014, cada um sobe no poleiro e xinga a mãe do outro. Hoje, não. Vamos votar. Acabou.”
Na presidência da sessão, Renan Calheiros engatou um ritmo de locutor de corrida de cavalos e fechou a conta num fôlego: “Declaro encerrada a discussão. Passamos à votação. As senadoras e os senadores que aprovam permaneçam como se encontam. Aprovado. A matéria vai à sanção presidencial. Será feita a devida comunicação à Câmara”. O Senado golpeou Dilma assim, numa votação simbólica.
Corta para a Câmara. Passava das 23h quando PMDB e PT decidiram obstruir a sessão para postergar o Waterloo do governo na batalha dos royalties do petróleo. Numa parceria do líder do PMDB, Eduardo Cunha, com o petista José Guimarães os dois principais partidos da coligação recusaram suas tropas. Depois de esvaziar o plenário, pediram a contagem dos presentes. Fizeram isso quando faltava votar três emendas ao projeto. Feita a verificação de quórum, a sessão caiu.
A encrenca só deve ser retomada na semana que vem. Não há mais como modificar o resultado. O governo pode, no máximo, empurrar a votação com a barriga. A essa altura, Dilma reza para que chegue logo a quarta-feira, dia do início do recesso parlamentar. O eco das palavras do líder Guimarães sobreviveu ao encerramento da sessão.
“Eu quero dizer aqui, com toda a coragem petista, nós vamos ter que rediscutir a base de sustentação do governo. Vamos ter que repaginar isso, porque do jeito que está não pode ficar. Essa derrota de hoje é simbólica para nós.” Não quero me omitir ensse momento. Irritado com a obstrução que adiou o desfecho da batalha, o suposto aliado Miro Teixeira, do PDT, deu razão a Guimarães. A coisa não ficará do jeito que está. Vai piorar.
“O mundo não termina hoje”, disse Miro, antes de insinuar que o resto do mandato de Dilma pode ser 100% feito de apocalipses. “Essa historia de obstrução contra nós não funciona. Hoje, grassou aqui o tom de ameaça. Não nos afeta. Nós ganhamos. Como o mundo não acaba hoje, vamos nos encontrar em outras votações. Quem sabe a primeira delas seja a apreciação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, antes do recesso”.
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