A proposta de reforma da Previdência que chegou na semana passada ao Congresso é ampla, arrojada. Não apenas os mortais trabalhadores, mas também servidores públicos e políticos terão de dar o seu quinhão. O naco desconhecido é o dos militares, que, garante o governo, terão as regras modificadas por um projeto de lei a ser apresentado no dia 20 de março. Ainda que assim seja, o tratamento especial já de saída criou desconforto e maculou a retórica da quebra de privilégios de todos, principal argumento pró-reforma.
Não há motivo plausível capaz de explicar a defasagem de 30 dias entre as reformas civil e militar. A não ser o óbvio: a questão está longe de ser consensual entre as altas patentes, e, possivelmente, junto ao presidente Jair Bolsonaro, que sempre defendeu o regime especial para os integrantes das Forças Armadas.
Oficialmente, o que se diz é que o sistema previdenciário dos militares não depende de alteração constitucional, o que levaria a uma tramitação mais célere. E que, ao fim e ao cabo, os dois textos correriam juntos. Nem mesmo o líder do PSL, Delegado Waldir, confia nisso. Ele defende que a PEC da Previdência só comece a andar na Câmara depois de a Casa receber o projeto para os militares.
Mesmo que a tese não vingue, o que é mais provável, e que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, consiga a proeza de instalar a Comissão de Constituição e Justiça (primeira a analisar qualquer proposta legislativa) na semana que antecede o Carnaval, o governo podia ter escapado de desgastes desnecessários, algo que ele vem colecionando. Não precisava ser desacreditado pelo líder do próprio partido do presidente. Tampouco dar oxigênio para a oposição, até aqui sem gás algum.
Sem tirar nem por, a complicação é que Exército, Marinha e Aeronáutica não estão dispostos a abrir mão do sistema estabelecido em 1960, que sofreu pouquíssimas alterações, e lhes assegura promoções e soldo integral até o fim da vida, além de pensões para familiares. Em um exercício semântico, afirmam que não fazem parte do regime previdenciário, pois não se aposentam, vão para a reserva remunerada, podendo ser convocados a qualquer hora. Como se fossem os únicos defensores do país, enfatizam a condição de trabalhar dia e noite sem hora extra e sem FGTS.
Entendem-se como especiais e não pretendem alterar esse status. No máximo, admitem abrir mão de alguns puxadinhos, desde que não se toque no principal. E o que gastam não é desprezível. Consomem 65% do orçamento das Forças Armadas com remuneração e aposentadorias, quase R$ 65 bilhões. No rombo de mais de R$ 186 bilhões da Previdência, respondem por R$ 40,5 bilhões.
Mexer com militares é bulir em vespeiro. Nos privilégios deles, então, picadas na certa. Essa tem sido a baliza de todos os governos desde o fim das duas décadas de ditadura. O avanço máximo ousado na redemocratização foi o de colocar as Forças Armadas sob o mando de um ministro civil, alteração inaugurada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1999, com a criação do Ministério da Defesa, hoje nas mãos do general Fernando Azevedo e Silva.
Com oito militares no primeiro escalão do governo, o ex-capitão que chegou à Presidência da República fez um mea-culpa digno ao entregar pessoalmente o projeto de reforma da Previdência ao Congresso, explicando por que hoje defende uma proposta que condenara em um passado recente. Terá de repetir a dose, desta vez com os companheiros de farda. Do contrário, o valor da da ruptura nas regalias que a reforma preconiza será como o de uma nota de R$ 3.
Por Mary Zaidan
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