A maneira mais cômoda de tratar Jair Bolsonaro é atribuir o seu sucesso à alienação dos brasileiros que o colocam no topo das pesquisas. Isso desobriga as pessoas da necessidade de pensar. Evitando-se o raciocínio, adia-se uma conclusão desoladora: o capitão apenas ecoa na campanha de 2018 uma agenda pertencente ao pedaço do Brasil que mantém os pés no século 21 e a cabeça na era proterozoica, anterior ao aparecimento dos animais na Terra.
Bolsonaro é o efeito. A causa é a perpetuação de um sistema político em que o Estado não tem homens públicos. Os homens públicos é que têm o Estado. Ao perceber que paga mais impostos para receber menos serviços, o pedaço Bolsonaro do eleitorado acha que o futuro era muito melhor antigamente, quando os presidentes vestiam farda. Ao notar que o Supremo começou a soltar larápios condenados, o lado Bolsonaro da sociedade passa a sonhar com um país em que os tribunais não sejam a única maneira de se conseguir justiça.
Porta-voz do desalento, Bolsonaro capta no ar o sentimento que seu eleitorado deseja expressar. Na última quinta-feira, dois dias depois de a Segunda Turma do Supremo ter libertado José Dirceu da penitenciária da Papuda, o capitão declarou em Fortaleza que, eleito, vai propor a ampliação dos quadros da Suprema Corte —21 magistrados, em vez dos 11 atuais. Ele fala em “colocar lá dez [ministros] do nível do Sergio Moro, para poder termos a maioria lá dentro.” A ideia é tola e irrealizável. Mas hipnotiza o naco Bolsonaro da plateia, já de saco cheio com a saliência de Gilmar Mendes e dos seus colegas da Segunda Turma, Éden supremo dos encrencados.
Na entrevista que concedeu na capital cearense, como em todas as outras, Bolsonaro agarrou as perguntas pelo colarinho como se enxergasse nelas a oportunidade de reproduzir as respostas iradas que sua plateia espera ouvir. Questionado sobre seus planos para deter o avanço das facções criminosas no país, o candidato declarou-se adepto do modelo da Indonésia. Bolsonaro disse coisas definitivas sem se dar conta de que não definia bem as coisas.
Na Indonésia, traficantes e consumidores de drogas são enviados para o corredor da morte. Mas Bolsonaro, tomado pelas palavras, referia-se às Filipinas, onde a bandidagem é passada nas armas sem a necessidade de uma sentença de morte formal. “Tinha dia de morrer 400 vagabundos lá. Resolveu a questão da violência”, celebrou o entrevistado.
Sem mencionar o nome de Rodrigo Duterte, o presidente das Filipinas, Bolsonaro descreveu um fato protagonizado pelo personagem, em 2016: “No meio do caminho, o senhor Barack Obama quis adverti-lo em nome da política de direitos humanos. E ele deu uma resposta deselegante. E continuou fazendo todo o trabalho. Hoje, é um país seguro.”
Sob Rodrigo Duterte, as Filipinas travam uma guerra sangrenta contra as drogas. A polícia é estimulada a executar vendedores e consumidores. O próprio presidente prometeu, diante das câmeras, matar dezenas de milhares de criminosos. Sua gestão adotou a prática de estimular usuários de drogas a assassinar os traficantes, queimando-lhes as casas.
Quando Barack Obama, ainda hospedado na Casa Branca, esboçou uma defesa dos direitos humanos nas Filipinas, Duterte chamou-o de “filho da puta.” Declarou que, se o presidente americano ousasse admoestá-lo num encontro bilateral, responderia de forma primitiva: ''Vamos chafurdar na lama como porcos se fizer isso comigo.'' É esse o personagem que inspira Bolsonaro na elaboração do seu programa de combate ao crime organizado no Brasil.
Bolsonaro não desceu anteontem de Marte. Faz pose de novidade, mas exerce seu sétimo mandato como deputado federal. Com 464 mil votos, foi o deputado mais votado do Rio de Janeiro na eleição de 2014. Sempre cavalgou a mesma agenda conservadora. Condena o casamento de homossexuais, deplora a ideologia de gênero nas escolas, prega o direito dos policiais de matar bandidos e chama presídios superlotados de “coração de mãe”, onde sempre cabe mais um bandido.
No governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, Bolsonaro pegou em lanças contra a política de privatizações e a abertura do mercado para a exploração de petróleo. Nessa época defendeu diante das câmeras o fuzilamento do presidente da República. Uma, duas, três vezes. A única novidade da atual temporada é a constatação de que Bolsonaro mudou de patamar. Emprestava sua voz ao nicho proterozoico do eleitorado fluminense. Tornou-se um porta-voz do atraso nacional.
Com menos de 10 segundos de propaganda no rádio e na TV, Bolsonaro tenta celebrar um acordo com o PR do ex-presidiário do mensalão Valdemar Costa Neto. O cruzamento do discurso anticorrupção do capitão com a biografia suja do dono do PR resultará num monumento ao cinismo. Mas Bolsonaro dá de ombros. Ele manda Costa Neto para escanteio, diz que seu contato é com o senador Magno Malta (PR-ES), seu potencial candidato a vice, e assegura que o acordo, se vier, virá “de graça, por amor”.
Só um amador acreditaria em relações políticas baseadas no amor. Mas o eleitor de Bolsonaro, mal-amado por representantes de outrora, olha ao redor, constata a generalização da vigarice e venera o seu candidato por contraste. O capitão assegurou em Fortaleza que prevalecerá no primeiro turno. Exagero de candidato. Talvez fique pelo caminho. Mas sua passagem pela campanha, seja qual for o resultado, já serviu para demonstrar que o pedaço primitivo do Brasil acordou.
Não fica bem pensar mal de Bolsonaro e usar luvas de renda para falar dos seus eleitores. A agenda pertence a eles. Vivo, Darwin diria que o brasileiro é mais uma prova do acerto da sua teoria evolucionária. Evoluiu tanto que já está fazendo o caminho de volta.
Por Josias de Souza
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