domingo, 12 de novembro de 2023

Por trás do apagão de São Paulo há a formação de uma quadrilha



As árvores cometeram vários crimes em São Paulo. O primeiro foi o de existir. Este poderia ser classificado como um crime menor. Seria uma contravenção tolerável se não passasse disso. Mas elas não se contentaram apenas com a existência. Passaram a existir em grande número. O crime tornou-se grave.

Em 3 de novembro de 2023, uma sexta-feira, 4,2 milhões de domicílios residenciais e comerciais ficaram sem energia elétrica em 27 municípios do Estado de São Paulo —2,1 milhões apenas na região metropolitana da capital. Para a maioria, o breu durou mais de 70 horas. Muitos ficaram à luz de velas por quatro ou cinco dias. Um acinte. O governador Tarcísio de Freitas foi ao ponto:

— O grande vilão desse episódio foi a questão arbórea.

A vilania não ficou restrita às árvores. Nicola Cotugno, presidente da Enel, a concessionária privada responsável pelo fornecimento de eletricidade na capital paulista e arredores, identificou um segundo culpado:

— Não é para nos desculparmos, não. O vento foi absurdo!

Nicola declarou que o vento soprou numa velocidade de 104 km por hora em alguns pontos da capital paulista. Realçou que, se chegasse a 120 km, já seria considerado um furacão.

Em conluio com a ventania, as árvores foram mais longe na sua vocação criminosa: converteram-se em vítimas. Morreram, num claro desafio à ordem. Abandonando qualquer tipo de escrúpulo, as árvores organizaram-se. De tocaia, só para aparecer mais, tombaram sobre a fiação elétrica. Tarcísio acusou:

— Foi questão da quantidade de árvores que, por falta de manejo adequado, acabaram caindo sobre a rede.

Para que não restasse dúvida, Nicola quantificou as árvores que desafiaram as autoridades, caindo por entre os postes:

— De 1.400 [que caíram na cidade], umas mil [feneceram sobre os fios]. Mobilizamos todas as equipes. Ficamos no centro de controle para estabilizar o atendimento. Trabalhamos noite adentro.

Organizando-se, as árvores pisotearam, por assim dizer, uma velha tradição das autoridades brasileiras: o deixa-pra-lá. No Brasil, nenhum problema é tão grande que não caiba no dia seguinte. Mas a vileza arbórea forçou as autoridades a fazerem alguma coisa. Nem que fosse uma cara de nojo. O velho deixapralaísmo nacional perdeu o nexo.

Ciente de que a melhor maneira de fugir do instinto criminoso das árvores seria enterrar os fios, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, saiu-se com uma solução emergencial, No terceiro dia de breu, ele disse que cogitava a criação de uma taxa para financiar o enterramento da fiação elétrica. Houve grande estrépito.

As árvores não falam. Mas o homem possui o gênio da palavra. De um prefeito paulistano não se exige que fale a língua de Dante, de Goethe ou de Shakespeare. Porém, a língua de Camões Ricardo Nunes precisaria falar com clareza.

Desnorteado pela conspiração das árvores com os ventos, o prefeito descobriu da pior maneira que, na administração pública, como na vida, a fronteira entre o improviso e a imprudência é muito tênue. Menos de 24 horas depois de jogar a contribuição no ventilador, Ricardo Nunes declarou que não haveria hipótese de impor semelhante suplício aos paulistanos.

Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.Quero receber

O prefeito esclareceu que sua ideia seria estimular os moradores da capital a se cotizarem voluntariamente para enterrar os fios por conta própria. Se os moradores de uma determinada rua ou região da cidade se animassem a colocar a mão no bolso, a prefeitura participaria da vaquinha.

A poda das árvores é uma responsabilidade do município. O contribuinte financia o serviço. Em 2023, o município de São Paulo reservou para a manutenção de áreas verdes e vegetação na cidade R$ 328 milhões. É mais do que os R$ 289 milhões gastos no ano passado.

Quando os galhos roçam a fiação, a concessionária de energia também pode realizar a poda. O preço está embutido na conta. O diabo é que as árvores fizeram uma opção criminosa pela existência exorbitante, forçando Nicola, o doutor que comanda a Enel, a realizar exibições públicas de malabarismo verbal:

— A [rede elétrica] de São Paulo é 98% aérea. É uma rede construída de forma econômica, então, foi uma boa decisão. No deserto, esse tipo de rede é segura, mas onde há árvores, com muita chuva e vento, ela fica exposta a danos —e São Paulo é uma cidade verde. Isso é maravilhoso, mas é preciso cuidar das árvores e da rede aérea. No ano passado, podamos 350 mil árvores. Esse é um trabalho anual. Mas agora, temos que fazer um debate sobre a mudança climática. Em 2021, faltou água em todo país, agora temos muita água e muito vento.

Na opinião de Nicola, a vaquinha para enterrar os fios não pode ser municipal, mas nacional:

— É preciso um olhar diferente. Já há discussões sobre possíveis ações, entre elas, enterrar a rede. Mas é uma decisão muito forte, que demanda coordenação, investimentos e tempo. A rede de São Paulo tem mais de 40 mil quilômetros. Inúmeras vezes se falou em enterrar os fios, mas não se chega a consenso de quanto vai custar nem de quem vai pagar. Por isso tem que ser um projeto de país, com custos compartilhados.

Tarcísio de Freitas cuidou de amenizar a inépcia coletiva. Disse que, muitas vezes, as prefeituras arrostam dificuldades para fazer o manuseio dos galhos. Segundo ele, há "inadequação de árvore por porte, de acordo com a via e localização das redes". Vítima da mesma dificuldade do prefeito de lidar com o português, o governador enfiou na sua prosa uma expressão da língua inglesa:

— É uma questão que a gente vai estruturar. Vamos pegar o benchmark [referência] de outros Estados que aprovaram legislações, como o Paraná, que ajudam o prefeito nesse manejo.

A solução, segundo Tarcísio, seria o envio à Assembleia Legislativa de um projeto de lei para disciplinar o corte das árvores.

O serviço de energia elétrica é uma concessão da União. Em 1996, criou-se a Aneel, Agência Nacional de Energia Elétrica. É uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Deveria fiscalizar os contratos de concessão, cobrando eficiência dos prestadores privados do serviço. Levada ao balcão, politizou-se. Sob Bolsonaro, foi terceirizada ao centrão.

Em São Paulo, a Aneel delegou a fiscalização, por convênio, à sua congênere estadual. Chama-se Arsesp, sigla da Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo.

No Brasil, como se sabe, a iniciativa privada e o Estado consideram-se isentos de falhas. Governadores e prefeitos são infalíveis. Agências reguladoras, federais ou estaduais, exibem competência inexcedível.

O único crime cometido por empresas como a Enel é o excesso de eficiência. Nicola Cotugno produziu um tipo sui generis de autoanálise, uma autocrítica a favor:

— Chegará um tempo em que se avaliará as dificuldades que nós enfrentamos. Não teve negligência nossa. Não é para nos desculparmos, não. Foi algo excepcional. Quando chega um furacão no Texas, o problema não é a empresa elétrica, é o furacão. Aqui, estamos acostumados com eventos menores. Mas, se olharmos de uma forma racional e não emocional, a gente está fazendo um trabalho incrível por um fenômeno pelo qual não tivemos controle.

Resta investigar o conluio que uniu as árvores e o vento na sabotagem aos consumidores de energia do maior e mais próspero estado da federação. Se a investigação for levada às últimas consequências, decerto serão identificados outros cúmplices invisíveis —os cupins e fungos, por exemplo.

A julgar pelo excesso de eficácia da concessionária privada e pelas inexcedíveis boas intenções das autoridades, não há mais dúvidas. O que desligou São Paulo da tomada foi um apagão fitossanitário decorrente da formação de uma quadrilha arbóreo-climática. Polícia nas árvores.


Nenhum comentário: