domingo, 26 de novembro de 2023

Cinismo bolsonarista permeia o protesto contra morte de preso


Cleriston da Cunha, de 46 anos, morreu após mal súbito na Papuda, em Brasília

Convocado para este domingo pelo pastor Silas Malafaia, com o apoio de Bolsonaro e de sua milícia parlamentar, o ato em memória de Cleriston Pereira da Cunha é o cirnismo levado às fronteiras do paroxismo. Preso em flagrante dentro do Senado no 8 de janeiro, Cleriston morreu na penitenciária da Papuda na última segunda-feira. A morte despertou no bolsonarismo um insuspeitado apreço pelos "direitos humanos dos presos" e pelo "Estado Democrático de Direito", os dois motes da manifestação programada para a Avenida Paulista.

A politização do cadáver de Cleriston faz lembrar um episódio que envolve Picasso e o seu "Guernica", quadro que mostra a destruição da cidade de mesmo nome durante a guerra civil espanhola. Um graduado militar alemão fez uma visita a Picasso em seu estúdio. Ao dar de cara com uma reprodução de "Guernica" na parede, perguntou: "Foi o senhor que fez?" E Picasso: "Não, não. Foram os senhores".

O questionamento às circunstâncias que permeiaram a morte do preso é plenamente justificável. Cleriston ostentava saúde precária. Diabético e hipertenso, arrostava complicações decorrentes da Covid. A defesa havia formulado oito pedidos de liberdade. As investigações estavam concluídas. O denunciado convertera-se em réu pela prática de crimes como associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.

Em manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria Geral da República avalizara o pedido de soltura. Sustentou que Cleriston poderia aguardar o julgamento arrastando uma tornozeleira eletrônica em prisão domiciliar. Relator dos inquéritos sobre os atos golpistas, o ministro Alexandre de Moraes absteve-se de julgar o pedido.

Numa evidência de que o caso de Cleriston pode ter sido tratado com negligência, Moraes já determinou a soltura de oito presos depois da notícia sobre a morte na Papuda, três deles em despachos sigilosos. O que desqualifica o ato da Paulista é o fato de que não haveria "patriotas" na Papuda se Bolsonaro e seus devotos não tivessem insuflado o golpismo que levou à depredação das sedes do Congresso, do Supremo e do Planalto.

Mal comparando, o 8 de janeiro foi a Guernica do bolsonarismo. Bolsonaro e os seus apoiadores cultivam a mania de olhar com distanciamento típico dos "scholars" o quadro de ruína que o golpismo produziu na democracia brasileira. Agem como se não fosse com eles. A atitude é cômoda. Muito cômoda. Mas criminosamente hipócrita.

O capitão e seus seguidores deveriam desperdiçar um naco de sua existência ruinosa para fazer uma introspecção. Pode ser após o despertar neste domingo, barriga colada à pia do banheiro, enquanto espalham o dentifrício pelas cerdas da escova.

Levando a experiência a sério, depois de bochechar e lavar o rosto, os bolsonaristas que cultuam a memória de Cleriston enxergarão no espelho, no instante em que erguerem os olhos para pentear os cabelos, o reflexo cínico e deslavado da culpa.

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