domingo, 21 de abril de 2024

Indefeso, Bolsonaro prioriza a demonização do algoz Moraes





Bolsonaro abomina a realidade, mas sabe que é o único lugar onde um político investigado pode arrumar uma defesa decente. Percebendo-se indefeso, o capitão recorre à empulhação de atos como o deste domingo, em Copacabana.

Os quatro anos de sua Presidência caótica revelaram que há sempre duas razões para as estratégias que Bolsonaro adota: a declarada e a real. A concentração de poderes nas mãos de Alexandre de Moraes fornece material para a confusão.

No gogó, Bolsonaro mantém Moraes na alça de mira porque o Brasil está "perto de uma ditadura" e "o mundo toma conhecimento do quanto está ameaçada a nossa liberdade de expressão." No mundo real, o personagem assemelha-se a um náufrago criminal que agarra o jacaré imaginando que é um tronco.

Tridente e chifres

Na composição da fábula do afogado, Bolsonaro e seus operadores escoram-se numa regra importada da propaganda. Baseia-se na personalização. Com um rótulo bem definido, qualquer coisa pode ser vendida.

Mestre da maledicência, Bolsonaro aprendeu em três décadas de vivência política que o mal, como abstração, é difícil de ser enxergado. Mas basta dar ao mal um tridente e um par de chifres e o sujeito passa a ter um inimigo para o qual transferir suas culpas. O demônio do bolsonarismo é Moraes.

A estratégia de Bolsonaro está crivada de ironia. Em 2018, conquistou o Planalto surfando a Lava Jato. Ao acomodar Sergio Moro na sua equipe ministerial, ajudou a arruinar a operação, pavimentando a trilha de suspeição que levaria à anulação das sentenças e à ressurreição de Lula. Agora, tenta grudar em Moraes a logomarca do lavajatismo.

Xerife-Geral da República

O bolsonarismo se esfalfa para colar em Moraes rótulos que o Supremo atribuiu a Moro: um juiz superpoderoso, autoconvertido em Xerife-Geral da República, que concentra em seu gabinete processos de grande repercussão e instrumentaliza o Direito em busca de resultados.

Nessa versão, Moraes mimetizaria os métodos de Moro. Obteve a delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid após mantê-lo preso por quatro meses. Como se desejasse produzir um novo delator, conserva atrás das grades desde agosto do ano passado, sem condenação, o ex-diretor bolsonarista da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques.

Na gênese da concentração de poderes nas mãos de Moraes está o inquérito sobre fake news. Foi aberto em 2019 pelo então presidente do Supremo, Dias Toffoli, à revelia da Procuradoria-Geral da República. Moraes foi escolhido relator sem sorteio.

Princípio do juiz natural

Sobrevieram outros inquéritos, como o que investiga os atos antidemocráticos e o que apura as perversões das milícias digitais. Em condições normais, seriam sorteados novos relatores. Mas considerou-se que os crimes sob apuração tinham conexão com o inquérito inaugural.

Desse modo, abriu-se uma brecha para que a defesa de Bolsonaro sustente a tese segundo a qual o Supremo subverte duplamente o princípio do juiz natural. Primeiro porque indeferiu recurso para que Bolsonaro, um ex-presidente sem foro privilegiado, fosse enviado à primeira instância.

Segundo porque o Supremo teria torturado suas próprias regras para manter nas mãos de Moraes todos os inquéritos que aproximam Bolsonaro da cadeia —da falsificação dos cartões de vacina à comercialização de joias da União, passando pelo mais grave: a tentativa de golpe que desaguou no 8 de janeiro.

Mistificação messiânica

Do ponto de vista jurídico, a tática do bolsonarismo é de uma ineficácia hedionda. Não há falatório capaz de eliminar as culpas do investigado. Afora a delação de Mauro Cid, a responsabilidade criminal de Bolsonaro está escorada em sólidas provas materiais e testemunhais.

Sob o prisma político, eventos como o da Avenida Paulista, em fevereiro, e o de Copacabana, neste domingo, fornecem a um investigado metaforicamente jurado de morte a possibilidade de se comportar como se estivesse cheio de vida. Faltando-lhe uma defesa crível, Bolsonaro apela à mistificação messiânica que hipnotiza os seus devotos.

A presença da evangélica Michelle Bolsonaro e do pastor Silas Malafaia nos palanques não é casual. Servindo-se da oratória da dupla, o capitão como que transforma as suas ovelhas em adeptas de uma religião.

Devoção renitente

Potencializa-se uma devoção dogmática que estimula os fiéis do mito a aceitar todas as presunções da divindade presumida a seu próprio respeito. Em matéria criminal, isso inclui concordar com o dogma segundo o qual Bolsonaro tem uma missão na Terra de inspiração divina e, portanto, indiscutível.

Um pedaço do bolsonarismo percebeu em 2022 que era possível fazer quase tudo por Jair Messias, exceto papel de bobo. Desvinculando-se da seita, esse naco do eleitorado preferiu preservar a democracia.

Os devotos renitentes são mais assustadores, porque não estão sendo cínicos. Eles acreditam mesmo que a autocanonização de Bolsonaro dá a ele o direito de desafiar não só a Justiça, mas o próprio bom senso.

Brincando de corda

Escorado na credulidade alheia, Bolsonaro joga com o tempo. Aposta que a evolução do calendário converterá a proteção da democracia, que dá à toga de Alexandre Moraes uma aparência de capa do super-homem, num assunto tão secundário quanto o combate à corrupção, que fez a fama pretérita de Sergio Moro.

Questionando a legitimidade de Moraes, Bolsonaro imagina que poderá livrar-se da inelegibilidade e da cadeia para a qual as provas o empurram esgrimindo questões processuais. Brinca de corda, esticando-a, sem se dar conta da natureza do nó que lhe roça o pescoço.

Proferidas na primeira instância, as sentenças de Moro foram tisnadas pela Vaza Jato e anuladas pela mesma Suprema Corte que julgará as ações penais que o procurador-geral Paulo Gonet se equipa para formular. Para salvar Bolsonaro, o Supremo precisaria anular a si mesmo.

Um comentário:

AHT disse...

O poema “Sinto vergonha de mim” refere-se a um discurso feito pelo grande jurista, iplomata e político brasileiro, Rui Barbosa, ao renunciar a sua cadeira no Senado, em 14 de dezembro de 1914. A seguir, os últimos 22 versos desse poema.


“Sinto Vergonha de Mim” (Rui Barbosa)

Tenho vergonha da minha impotência,
da minha falta de garra,
das minhas desilusões
e do meu cansaço.

Não tenho para onde ir
pois amo este meu chão,
vibro ao ouvir meu Hino
e jamais usei a minha Bandeira
para enxugar o meu suor
ou enrolar meu corpo
na pecaminosa manifestação de nacionalidade.


Ao lado da vergonha de mim,
tenho tanta pena de ti,
povo brasileiro!

“De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes
nas mãos dos maus,
o homem chega a desanimar da virtude,
A rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto”