segunda-feira, 13 de março de 2023

Marido bolsonarista tornaria suspeita procuradora em caso de joias? Entenda


A procuradora Gabriela Hossri com seu marido, Nelson Hossri, e este com Eduardo e Jair Bolsonaro. E a capa do Código de Processo Penal Imagem: Reproduções

Gabriela Saraiva de Azevedo Hossri, procuradora da República que atua, ou atuava, em Guarulhos, foi designada, na semana passada, para a investigação do caso das joias que entraram ilegalmente no país no dia 26 de outubro de 2021, em bagagem de membros da comitiva de Bento Albuquerque, então ministro das Minas e Energia. Uma caixa, com os mimos masculinos, não foi detectada pela Alfândega do Aeroporto de Guarulhos e está com Jair Bolsonaro. A outra, com os femininos, avaliados em R$ 16,5 milhões, está retida. E já se sabe, a esta altura, que houve ao menos oito tentativas, no governo anterior, de resgatá-la ao arrepio da lei. Bolsonaro pretendia incorporar os diamantes a seu patrimônio pessoal, não ao acervo da República. E qual a notícia? A procuradora é casada com um bolsonarista roxo. Isso é problema? Vamos ver.

Antes de tudo, note-se que ela deve sair do caso antes mesmo de entrar. E por quê? O MPF em São Paulo distribui seus 126 procuradores em 31 municípios, além da Capital. O caso ficou com a unidade de Guarulhos em razão da territorialidade: o crime aconteceu nessa cidade. Em janeiro, informa o G1, Gabriela havia pedido remoção para Osasco. A transferência foi publicada no Diário Oficial no dia 7 de março. Já que o critério é o território, não há como a procuradora, que está de férias, assumir o caso ao voltar.

Gabriela é casada com Nelson Hossri, vereador de Campinas pelo PL. Ao G1, ele deu a seguinte declaração:
"Defendo e participo dos movimentos de direita em Campinas desde 2015. Optar em apoiar Bolsonaro é um direito meu. Me identifico mais com suas pautas do que com as pautas da esquerda. Ponto". No que lhe diz respeito, sem dúvida, ponto. Isso é lá com seus eleitores. Ativo nas redes, há fotos suas ao lado do ex-presidente e do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Não se pode dizer que seja contido na linguagem. Numa das postagens, mandou ver: "Vamos dar um chute na bunda da esquerda". Bem, vocês conhecem esse estilo, não é?

Consta que os colegas consideram que Gabriela é uma profissional "rígida". Começou a carreira em Altamira (PA) e depois passou por Viçosa (MG), Passos (MG) e Pouso Alegre (MG). Está no 5º ofício da Procuradoria da República de Guarulhos desde 2020. Ela própria não é assídua das redes. Mas, afinal, deveria ou não ser considerada suspeita ou dar-se por impedida nesse caso se ainda atuasse em Guarulhos? Nota: a publicação no Diário Oficial cessa qualquer dúvida sobre a unidade a que ela pertence: agora é Osasco.

FALEMOS DE IMPEDIMENTO E SUSPEIÇÃO
Respondamos a pergunta de olho na lei. Se Gabriela já não tivesse sido transferida, a pedido, para outra unidade, poderia atuar no caso, sim. O maridão bolsonarista não a tornaria suspeita nem a obrigaria a se declarar impedida, lembrando sempre que a decisão final, se houver arguição de suspeição, é do juiz, segundo dispõe o Artigo 104 do Código Penal, a saber:
"Se for arguida a suspeição do órgão do Ministério Público, o juiz, depois de ouvi-lo, decidirá, sem recurso, podendo antes admitir a produção de provas no prazo de três dias."

Voltemos ao ponto. O Artigo 258 do CPP trata do impedimento ou suspeição de membros do Ministério Público. Reproduzo:
"Art. 258. Os órgãos do Ministério Público não funcionarão nos processos em que o juiz ou qualquer das partes for seu cônjuge, ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, e a eles se estendem, no que lhes for aplicável, as prescrições relativas à suspeição e aos impedimentos dos juízes."

Aplicam-se, pois, aos membros do MP os artigos sobre suspeição ou impedimento de juízes: do 252 ao 256 do CPP. Se quiserem pesquisar, a íntegra do CPP está aqui.

Estivesse a procuradora ainda em Guarulhos, poderia, sim, ser a responsável pelo caso das joias se decidisse não abrir mão dele. E é pouco crível que um juiz aceitasse uma arguição de suspeição. E isso nos diz, prestem atenção!, que também o Código de Processo Penal precisa mudar para se adaptar aos novos tempos. O texto legal é omisso sobre procuradores e promotores que fazem proselitismo por aí. É claro que isso tem de mudar.

Vimos o que aconteceu com a Lava Jato, não? Procuradores davam plantão nas redes e na imprensa, transformando em alvos, fora dos autos, pessoas sob investigação e atacando ministros do Supremo que arbitravam sobre demandas do próprio MP. O Código de Processo Penal precisa ser atualizado à luz da existência das redes sociais.

CÔNJUGE É CAUSA DE SUSPEIÇÃO?
Mas "o conge" ou "a conja" -- para lembrar a "língua" falada por aquele cara -- podem ser causa de impedimento ou suspeição? Só nestes casos:
- se atuarem como advogados da causa;
- se forem parte interessada no processo;
- se responderem a processo análogo àquele em que os procuradores atuam.

E só.

O marido bolsonarista da procuradora, que se saiba, não se encaixa em nenhuma dessas três hipóteses. Assim, não tivesse ela pedido a transferência, poderia, reitero, atuar no caso. A questão que fica é esta: poder, com efeito, ela poderia. Mas deveria?

MINISTÉRIO PÚBLICO LANHADO
O Ministério Público, muito especialmente o Federal, vem sendo severamente lanhado desde 2014, ano de criação da Lava Jato. A parceria ilegal entre procuradores e juízes jogou o país na lama do bolsonarismo, de que a tentativa de golpe de 8 de janeiro e o escândalo das joias -- para o qual Gabriela foi sorteada -- são partes. Com o bolsonarismo, conhecemos o MPF escandalosamente omisso. Se a PGR pré-Bolsonaro levou ao absurdo a criminalização da política, a PGR pós-Bolsonaro levou à insanidade o que chamo de "descriminalização do crime".

Há ações de moralização da vida pública e das instituições que podem e devem ser empreendidas, mesmo que não exista a imposição legal. Se a procuradora não tivesse solicitado a transferência, já efetivada, deveria pedir para sair do caso. E a razão é bastante objetiva. Digamos que permanecesse e acabasse se convencendo de que Bolsonaro não cometeu crime nenhum: os inconformados com tal decisão jamais acreditariam na sua independência porque é impossível ignorar quem é seu marido e o modo como este se coloca nas redes.

Gabriela pertence agora, conforme está no Diário Oficial, à unidade de Osasco do Ministério Público Federal em São Paulo. Ainda que permanecesse em Guarulhos, deveria seguir aquela máxima, já um clichê, sobre a mulher de César: não bastava ser honesta; era preciso que também parecesse honesta.

Depois de tudo a que se assistiu nos últimos nove anos, não basta a procuradores que sejam independentes — não em relação à lei, mas à apuração —; é preciso que também pareçam independentes.

Para quem ainda não entendeu: o objetivo deste texto não é demonstrar que o caso não pode ficar com Gabriela porque seu marido é bolsonarista. Não pode ficar porque ela já não está mais em Guarulhos. O objetivo deste texto é lembrar que o Código de Processo Penal precisa se adaptar à era das redes no que respeita a impedimento e suspeição de juízes e de membros do Ministério Público.

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