Por Reinaldo Azevedo
Digamos que o diabo tivesse acordado de mau humor e resolvesse fazer uma das suas: “Deixe-me ver onde é que vou criar uma confusão para que as coisas fiquem muito complicadas; para que a Europa se sinta ainda mais insegura; para açular as ações terroristas do Estado Islâmico; para levar tensão à Otan; para deixar Obama, uma vez mais, com queixo de estátua e nada a dizer…” E o diabo não poderia ter sido mais certeiro: escolheu a Turquia.
Foi o que se viu com a tentativa desastrada e desastrosa de golpe de Estado empreendida por uma parte do Exército na noite desta sexta. Ainda não está claro quais facções exatamente se mobilizaram, mas é possível que, na sua maioria, sejam lideranças laicas das Forças Armadas, que estão sendo progressivamente substituídas, diga-se, por elementos ligados ao Partido da Justiça e Desenvolvimento, do quase ditador Recep Erdogan, primeiro-ministro entre 2003 e 2014 e, a partir de então, presidente da República. Sim, há uma progressiva islamização das Forças Armadas turcas, e essa é um das raízes, apenas uma, da crise. Enquanto escrevo, fala-se em pelo menos 90 mortos e mais de mil militares presos.
Foi uma tentativa de golpe nos moldes clássicos, com tanques da rua, ocupação de emissoras de TV e ataque às forças leais ao governo. Mas falhou. Erdogan, que estava fora do país, por meio de seus porta-vozes, convocou a população a ir às ruas em defesa da legalidade. Os golpistas chegaram a anunciar o controle do país, apressando-se em dizer que agiam para preservar “a ordem constitucional, a democracia, os direitos humanos e as liberdades”.
Acrescentaram que a Turquia manteria todos os seus acordos internacionais. Durou pouco. O mundo repudiou a quartelada, Erdogan venceu a parada e, podem apostar, virá um expurgo em massa de militares, e a perseguição certamente se estenderá a lideranças civis.
É evidente que uma ação dessa natureza não se planeja — E MAL, COMO SE VIU — só nos quarteis. É claro que lideranças da sociedade civil também estavam envolvidas na conspirata. E não duvidem: Erdogan vai esmagá-las. E o que sempre fez com os que se opõem a ele, mesmo sem motivos. Imaginem com uma patuscada sangrenta como essa.
Um autogolpe
A literatura política conhece a expressão “autogolpe”, que designa a prática de governantes autoritários que rompem mesmo a legalidade precária que os sustenta para conquistar ainda mais poder e se impor de forma mais discricionária. Não duvidem! A raposa Erdogan está dando um autogolpe. E explico o que quero dizer.
Não! Os que desfecharam a quartelada não são seus paus mandados — ainda que não se deva descartar que agentes infiltrados tenham ajudado a elevar a pressão dos quarteis —, mas é evidente que a Turquia não é uma república bananeira, em que meia-dúzia de fardados tramam um golpe, sem que os serviços de inteligência detectem a movimentação. Acreditar que Erdogan não sabia da fermentação golpista corresponde a assinar um atestado de estupidez. Diria até que ele tanto sabia que, prudentemente, estava fora do país.
É nesse sentido que a quartelada foi um “autogolpe”. Erdogan pode até ter corrido algum risco, mas o fato é que pagou para ver, na certeza de que as forças que lhe são fiéis aguentariam, como aguentaram, o embate. Não é por acaso que, no seu retorno, depois de retomado o poder, ele tenha agradecido aos céus o ocorrido. Agora, sim, ele poderá passar o rodo nas Forças Armadas como nunca antes na história da Turquia. E a Europa e os Estados Unidos vão ficar de bico calado.
O fim do mito turco
O episódio é mais uma narrativa a confirmar — e não digo com satisfação, mas é apenas um fato — a incompatibilidade entre um governo islâmico e a democracia. Erdogan concentra hoje poderes de ditador. A imprensa turca vive sob censura, e jornalistas estão na cadeia, acusados de tramar um… golpe de estado! Adversários do presidente são permanentemente perseguidos por uma Justiça que, progressivamente, se ocupa mais das leis de Alá do que das leis dos homens.
O comportamento de Erdogan em relação ao Estado islâmico — o país é vizinho da Síria, e mais de dois milhões de refugiados já cruzaram a fronteira — é, para dizer pouco, ambíguo hoje, mas já foi de colaboração. Há a suspeita fundada de que tenha ajudado a armar o EI contra o governo de Bashar Al Assad. A Turquia abrigou, com certeza, células de movimentos terroristas contra o presidente sírio. Erdogan sabe ser implacável é com os curdos.
Se vocês me perguntarem, no entanto, se a maioria da população turca quer a semiditadura truculenta de Erdogan, a resposta é “sim”. Ora, “mas a democracia não é o regime da maioria, Reinaldo?” É. Mas a simples maioria não faz democracia, como sabe o fascismo.
Que chances haveria de o mundo democrático, o que interessa — a começar dos países europeus —, apoiar um governo conquistado com os tanques? Inferior a zero. Ainda que as força leais a Erdogan não tivessem reagido, o regime não se sustentaria. A simples suposição de que um golpe nesses termos seja possível na Europa, ainda que esse pedaço da Europa seja a Turquia, já é a evidência de sua inviabilidade.
Erdogan vai se aproveitar para se livrar dos inimigos, golpistas ou não.
Vem ditadura. É o autogolpe.
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