Carisma, palavra grega que expressa o fascínio de uma personalidade sobre as demais, incrustou-se na religião e na política. Numa, é tratada como dom divino; na outra, como atributo de poder. Numa, faz sentido; na outra, faz estragos.
Tornou-se, porém, praxe avaliar a qualidade de um candidato a partir de seu encantamento pessoal, não de seu conteúdo. Não ser carismático é um defeito. No entanto, a história está cheia de carismáticos que operaram tragédias. Hitler, carismático, destruiu a Alemanha. Konrad Adenauer, desprovido do dom, reconstruiu-a.
Jânio Quadros e Fernando Collor deixaram um rastro de crises em sua passagem pelo poder, ao qual ascenderam via carisma. Tancredo Neves, sem qualquer carisma, operou a redemocratização.
Quanto mais atrasada ou problemática uma sociedade, mais o fator carisma há de pesar. O carisma leva o eleitor a votar com a emoção, não com o bom senso, deixando de lado fatores fundamentais como coerência de atos e propostas.
Não é casual que quase todos os ditadores sejam carismáticos. Vivem do mito que constroem e governam por meio dele. O resultado não costuma ser bom. Se há alguma qualidade na presente eleição, é a ausência do fator carisma entre os postulantes, o que permite o eleitor avaliá-los com algum grau de realismo.
Nem José Serra, nem Dilma Roussef, nem Marina Silva exibem qualquer carisma. Fala-se que o diálogo entre eles é morno. Não é. É tenso, administrado. Sabem que não sensibilizarão o eleitor pela emoção, mas pelo poder de convencimento de suas idéias.
Há marqueteiros que pensam o contrário; que eleição é emoção. Tudo bem, desde que a emoção esteja nos substantivos, não nos adjetivos. Machado de Assis dizia que um bom texto é o triunfo dos substantivos sobre os adjetivos.
Estava certo: um expressa conteúdo; o outro, a ausência dele. Não se governa por slogans.
Carisma e demagogia formam uma dupla predadora na política. Costumam ser indissociáveis. Um dos truques mais comuns que operam é provocar a bílis do eleitor. Denunciam a trapaça para capitalizar a indignação coletiva, a mais elementar forma de trapaça, e põem em cena os instintos mais primitivos.
Não apenas os políticos, mas a própria mídia age freqüentemente dessa forma: critica o jogo político para melhor situar-se dentro dele. Na América Latina dos nossos dias, é uma tendência em curso. Basta ver Hugo Chavez, na Venezuela, além do eterno Fidel, em Cuba. Personificam a indignação popular denunciando trapaças políticas (reais e fictícias), mas não pretendem eliminá-las – senão monopolizá-las.
No Brasil, a velha UDN (União Democrática Nacional) de Carlos Lacerda fez do denuncismo sua maior arma. Levou Getúlio Vargas ao suicídio a partir da exploração do tema da corrupção, o “mar de lama”, que, segundo a retórica da época, escorria dos subterrâneos do Palácio do Catete. De denúncia em denúncia, numa época movida a discursos, levou o país ao golpe militar de 64.
A redemocratização, a partir de 1985, gerou ganhos políticos e econômicos cumulativos. Aboliu a velha prática de o sucessor demolir a obra do antecessor, pondo fim à era das rupturas. A estabilidade econômica, hoje evocada como obra desse ou daquele governo, é, na verdade, obra contínua.
Começou com os sucessivos e pedagógicos fracassos de planos econômicos, como o Cruzado, que desembocaram no Real. Vieram na sequência a Lei de Responsabilidade Fiscal, as bolsas assistencialistas que atenuam a pobreza, avanços na saúde (o SUS) e a expansão da rede de ensino (à qual falta dar conteúdo).
Os atuais candidatos não mencionam qualquer intenção em mudar nada disso. São conquistas consolidadas. Ao público, não interessa saber quem é o pai (ou a mãe) da criança. Quer saber o que pretendem fazer com ela daqui para a frente.
Num contexto desses, não cabe falar em plebiscito. Não há heróis ou vilões, mas carências imensuráveis, que exigem argúcia, inteligência e conteúdo por parte de quem for eleito.
Na religião, carisma evoca santidade; na política, costuma ser o contrário. Rezemos para que os carismáticos fiquem nos templos.

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