domingo, 3 de dezembro de 2023

Nome do problema de Lula é Emmanuel Macron, não Milei



Não é que o governo brasileiro tinha dificuldades para enxergar uma solução para os entraves ao fechamento do acordo comercial entre União Europeia e Mercosul. A questão é que Lula e seus operadores ainda não haviam enxergado nem o problema. De repente, ficou nítido que o nome do estorvo é Emmanuel Macron, não Javier Milei.

Após encontrar-se com Lula à margem da cúpula climática da ONU, em Dubai, o presidente francês chutou o balde. Disse ser "completamente contra o acordo". Em resposta, Lula choveu no molhado: "A França é mais protecionista".

O intercâmbio de amabilidades jogou água no chope do Planalto, que utilizava a aversão retórica de Milei ao Mercosul para pressionar os negociadores europeus. Lula sonhava com um arremate do entendimento com a União Europeia até a próxima quinta-feira (7).

Nesse dia, ocorrerá no Rio de Janeiro, no Museu do Amanhã, um encontro dos chefes de Estado do Mercosul. O Brasil cultivava a ilusão de anunciar a conclusão do entendimento com o bloco europeu às vésperas da posse do presidente eleito da Argentina, marcada para 10 de dezembro.

Ao arrancar o manto diáfano do protecionismo que inspira a oposição dos franceses ao acordo com o Mercosul, Macron foi ao ponto: "Se não posso explicá-lo a nenhum europeu, não vou defendê-lo internacionalmente".

Macron trocou sua posição em miúdos: "Não posso pedir aos nossos agricultores, aos nossos industriais na França, e em toda a Europa, que façam esforços para descarbonizar, para sair de certos produtos, e depois dizer que estou removendo todas as tarifas para trazer produtos que não aplicam essas regras".

O miolo do acordo de livre comércio Mercosul-UE é justamente a isenção ou redução na cobrança de impostos de importação de bens e serviços produzidos nos dois blocos. A agricultura francesa é vigorosamente subsidiada. Mas o subsídio não torna as lavouras da França competitivas. Daí o pavor instilado pela perspectiva de concorrer com o agronegócio brasileiro.

Num primeiro momento, a sinceridade de Macron deixou Lula, por assim dizer, sem palavras. Ele havia marcado uma conversa com os jornalistas na COP28. Ocorreria nas pegadas da entrevista do colega francês. Seria uma oportunidade para que Lula adicionasse argumentos à acusação de protecionismo que borrifou na atmosfera num encontro fortuito com os microfones, enquanto caminhava pelos corredores da conferência da ONU. Súbito, a entrevista formal de Lula foi cancelada. Alegou-se que sua agenda estava atrasada.

A pretensão de de Lula de se entender rapidamente com a Europa não estava escorada no vazio. Havia um esforço. Em agosto, negociadores brasileiros e europeus realizaram reuniões virtuais para tentar aparar arestas. No mês passado, representantes da Comunidade Europeia desembarcaram em Brasília. Reuniram-se a portas fechadas com diplomatas do Itamaraty. Os contatos seriam retomados neste início de semana, antes da cúpula de quinta-feira do Mercosul. Num prenúncio do que está por vir foram cancelados.

O miolo do enrosco são os pretextos ambientais. No último mês de maio, os europeus encostaram uma carta adicional no texto fechado em 2019, ainda sob Bolsonaro. No documento, a União Europeia cobra dos membros do Mercosul o cumprimento das metas negociadas há oito anos no Acordo de Paris.

Em bom português, tratava-se de impor um boicote à compra de produtos agropecuários provenientes da Amazônia e do cerrado brasileiro. Esgrimiu-se a ameaça de suspender, já a partir de 2024, a aquisição de grãos e carnes provenientes de áreas desmatadas depois de 2020 —uma época em que Bolsonaro exibia ao mundo seu negacionismo ambiental e a aliança preferencial que sua administração firmara com o ogronegócio.

Ao pressentir que a Europa, com seu protecionismo esverdeado, cobrava dele o passivo ambiental de Bolsonaro, Lula levou a encrenca dos bastidores diplomáticos para o palanque. Em julho, de passagem por Paris, declarou que "não é possível que haja uma carta adicional fazendo ameaças a um parceiro estratégico" como o Brasil.

Com atraso de quatro meses, Macron aproveitou a ribalta da COP28 para informar, também aboletado sobre o palanque, que o impossível de Lula é apenas uma palavra que traz o possível dentro de si. Ficou entendido que a França não parece disposta a passar uma borracha nas digitais indeléveis que imprimiu na carta adicional de maio.

Nos bastidores, Lula e os diplomatas brasileiros se esforçavam para converter a eleição de Milei numa espécie de janela de oportunidades. Em 20 de novembro, um dia depois da vitória do anarco-economista argentino, Lula tocou o telefone para Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. No dia seguinte, contou no programa radiofônico Conversa com o Presidente que o tema do telefonema foi o acordo Mercosul-UE.

No domingo passado, o manuseio do "fator Milei" perdeu força. Em visita-surpresa a Brasília, a futura chanceler da Argentina, Diana Mondino, reuniu-se com o ministro Mauro Vieira (Itamaraty). Entregou-lhe a carta em que Milei convidou Lula para sua posse e manifestou o desejo de manter viva a cooperação com o vizinho.

Diana Mondino disse a Mauro Vieira que a ideia de Milei não é retirar a Argentina do Mercosul, mas contribuir para a reformulação do bloco. Informou também que o futuro presidente argentino não cogita converter-se num "estorvo" para o fechamento do acordo com a União Europeia, como insinuou durante a campanha.

A gradativa conversão de Milei numa espécie de ex-Milei reforça a percepção de que o nome do problema é mesmo Macron. Lula ainda pode acionar o bumbo para propagandear na cúpula do Mercosul, na semana que vem, a tese segundo a qual houve um estreitamento da inimizade com a Europa.

Considerando-se os dois blocos, o acordo Mercosul-União Europeia envolve 31 países. Para vigorar, um entendimento precisaria ser ratificado pelos parlamentos de todas essas nações. A contrariedade expressada por Macron ecoa a conhecida aversão do Legislativo da França.

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