quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Terrorismo tem de ser chamado de 'terrorismo', seja de milícia ou de Estado



Guerras, história e mundo afora, matam civis inocentes em sentido amplo: muitos nem mesmo sabiam por que os contendores estavam lutando. Desaparecem, são arrancados de suas respectivas famílias, têm suas histórias interrompidas e ponto. Os próximos se lembrarão deles por algum tempo, e depois será só o pó da história a cobri-los com o anonimato. Todo conflito tem danos colaterais, e alguns são planejados, como as monstruosidades de Dresden e Hiroshima, ainda que se combatesse a abominação. Resta uma espécie de conforto compensatório a nos dizer: "Foi um preço a pagar contra o mal maior." Não nos esqueçamos, no entanto: as vítimas não podiam responder pelas insanidades de seus respectivos governos. E daí? Foram colhidas pela marcha da insensatez que levou ao conflito. "Sic transit gloria mundi..."

Mas é preciso cuidado. A indiferença moral diante da barbárie "porque, afinal, as coisas são assim mesmo" é, ela própria, parceira da violência. Tanto pior quando se salta da indiferença para o proselitismo em nome de uma causa, de uma prefiguração e, vejam que coisa!, até mesmo de um alegado senso de justiça. Inexiste, entendo, uma adversativa aceitável diante dos atos terroristas praticados pelo Hamas contra civis israelenses: "Sou contra a violência, mas a ocupação dos territórios palestinos..." Entendo que os que enveredam por aí fatalmente vão se perder no caminho. Não vejo causa justa que explique o assassinato em massa, a tortura, o sequestro.

Parece-me igualmente inaceitável que, diante de tudo o que se viu e de horrores que podem ser presumidos a partir das marcas deixadas nos corpos, se decida disputar o significado da palavra "terrorismo". Um movimento de resistência à opressão não mata indiscriminadamente, não provoca massacres didáticos, não se vinga do opressor eliminando crianças. "MAS e as agruras a que estão submetidos infantes palestinos?..." Calma lá! Eu também não as endosso nem normalizo.

Correntes de esquerda, no Brasil, repudiaram a brutalidade, mas não seguiram o presidente Lula, que chamou de "terrorista" o ataque. Sendo essa a convicção, que não o façam, mas se expõem, incautas, às acusações da extrema-direita. Eu sei: fosse realmente o humanismo a pautá-la, é certo que seus próceres teriam mais cuidado com os direitos dos indígenas, dos negros, das mulheres, da população LGBTQIA+... Que nada! Muitos reacionários nem sabem exatamente do que falam. Resolveram transformar o massacre numa janela de oportunidades contra adversários. Exercem a necropolítica por outro meio. E, no entanto, o único presidente que teve um ministro que resolveu citar um texto de Goebbels, tentando mimetizar uma cena produzida pelo carniceiro, foi Jair Bolsonaro, o mesmo que recebeu uma deputada alemã de um partido de clara inspiração neonazista.

Esses setores da esquerda cometem dois erros adicionais aos evitar classificar de terroristas aqueles atos, ainda que possam não se dar conta: a) atrelam a causa palestina aos métodos de homicidas compulsivos; b) deixam sua visão sobre aquelas cenas dantescas ser distorcida pelo filtro da repulsa ao atual governo de Israel. Está tudo errado. E raramente foi tão necessário como agora ter clareza sobre os conceitos.

O MAU GOVERNANTE

Ainda que pareça incrível, o debate na imprensa profissional israelense está menos contaminado de obtusidades ideológicas do que por aqui. Inexiste, obviamente, simpatia pelo terror, mas Binyamin Netanyahu está sendo duramente cobrado pelos erros que cometeu. A muitos escapa, mas as relações do governo israelense com o Hamas viviam uma espécie de normalidade cooperativa, apesar do bloqueio. A moderada Autoridade Nacional Palestina (ANP), na Cisjordânia, ao contrário, vinha sendo continuamente desmoralizada.

Com o grupo supostamente sob controle — um míssil ou outro de vez em quando, que o Domo de Ferro continha —; com a ANP fora do jogo; com entendimentos diplomáticos com países árabes, interessados em conter o Irã, Netanyahu podia ignorar a reivindicação do Estado Palestino, promover assentamentos em território ocupado sob o nariz de Mahmoud Abbas e ainda se dar ao luxo de tentar aniquilar a independência do Judiciário. A tragédia, inédita na forma e no número de civis mortos numa única ação, fora de uma guerra declarada, expôs a fragilidade a que um mau governante, em parceria com extremistas de direita, conduziu o país.

Por que é importante que os conceitos estejam claros? A população civil palestina já está sofrendo as consequências dos ataques aéreos israelenses e do chamado bloqueio total. É o começo. Virá em seguida a incursão terrestre. A sequência de fatos indica que o governo israelense deve querer mais do que uma expedição punitiva: tudo indica que só a derrubada da milícia que governa Gaza e a eliminação física de seus líderes serão respostas à altura da agressão sofrida. A que custo?

É muito importante não confundir a causa palestina com os desatinos do Hamas. E, entendo, para tanto, é preciso chamar terroristas de... terroristas. É muito importante não confundir o direito de Israel à defesa — e, pois, de tentar neutralizar um inimigo que tem na destruição do país a sua razão de ser, ainda que o primeiro-ministro tenha perigosamente flertado com ele — com práticas que podem configurar terrorismo de Estado. Se a causa nos faz perder parâmetros e medidas, então tudo é permitido, e podemos nos tornar vítimas de nossa própria concepção de mundo.

ENCERRO

Voltemos lá ao começo. Na marcha da insensatez, já assistimos a vitórias de boas causas que se deram com instrumentos detestáveis. Pretendo que cheguemos a uma formulação distinta daquilo que Maquiavel nunca escreveu: os tais meios que justificariam os fins. A minha divisa, já escrevi, é outra: os meios qualificam os fins. Eu a considero um avanço moral. E, pois, o terrorismo nunca há de ser um meio aceitável, seja o de uma milícia, seja o de um Estado organizado. No fim, morremos todos sob o pó da história. Mas podemos viver com mais dignidade e decência.

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