sexta-feira, 27 de outubro de 2023

NO PACOTE DE EXTORSÃO DA MILÍCIA, ATÉ MENINOS QUE VENDEM BALAS NAS RUAS PAGAM TAXAS


Vendedor de água: ambulantes também são alvo da extorsão por milicianos na Zona Oeste do Rio — Foto: Gabriel de Paiva/Agência O Globo/Arquivo

Camelôs, flanelinhas, fretistas, barraqueiros de praia, motoristas de van, mototaxistas, meninos que vendem balas nos semáforos. Essas atividades tão diferentes entre si encontram, na Zona Oeste do Rio, um ponto em comum: todas são alvo da extorsão praticada pela milícia e precisam se submeter ao pedágio do crime. No segundo capítulo série especial em cinco capítulos sobre as milícias, dentro do projeto exclusivo para assinantes Tem Que Ler, O GLOBO mostra as histórias de quem é obrigado a pagar taxas aos criminosos para continuar trabalhando.

No início de 2017, o motorista José Carlos da Silva, de 48 anos, começou a trabalhar fazendo fretes para clientes de um supermercado em Vila Valqueire, na Zona Norte do Rio. A oferta de emprego veio de um amigo, que integrava um grupo de fretistas que trabalhava naquele ponto há 20 e sabia das dificuldades financeiras pelas quais José Carlos passava na época. Como estava endividado, o motorista precisou da ajuda do amigo até para financiar o carro que passou a usar. No entanto, a animação por ter conseguido uma fonte de renda logo deu lugar ao medo: em agosto daquele ano, milicianos do Morro do Campinho, vizinho ao mercado, foram ao ponto e comunicaram que, a partir daquele momento, cada fretista seria obrigado a pagar R$ 30 por dia à quadrilha.

A história escancara como a milícia sequestra o cotidiano e não poupa a parcela mais pobre da população, formada por trabalhadores autônomos e informais. Pelo menos 43 atividades econômicas diferentes fazem parte do portfólio de extorsão das milícias do Rio: do monopólio da venda de kit churrasco à exploração de estacionamentos; da extração de saibro à construção de prédios.

A TABELA DO CRIME

  • Meninos de sinal: crianças e adolescentes que vendem balas e outros produtos em semáforos em Santa Cruz e Campo Grande têm de pagar R$ 50 por semana. A área é dominada pelo bando do miliciano Zinho.
  • Vans: em Santa Cruz, os motoristas de vans precisam pagar à milícia R$ 780 todas as quartas-feiras. Em Nova Iguaçu, nas áreas sob controle dos milicianos Juninho Varão e Tubarão, a taxa semanal de R$ 730 tem de ser quitada toda segunda-feira. No Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste, onde atuam Zinho e uma facção do tráfico, as vans pagam R$ 550 por semana. O pedágio dos milicianos em Jacarepaguá, região disputada entre paramilitares e traficantes, fica em R$ 600 por semana.
  • Mototáxi: mototaxistas que atuam em áreas da milícia em Santa Cruz e Campo Grande precisam pagar R$ 90 todos os sábados para continuarem circulando. Em Nova Iguaçu, o pagamento também é feito aos sábados: R$ 75. No Recreio, a taxa do crime fica em R$ 60. Em Jacarepaguá, o valor é mais alto: R$ 80 por semana.
  • Gatonet: ter acesso ao sinal clandestino de internet tem um custo pago mensalmente nas áreas de milícia. Em Nova Iguaçu e Jacarepaguá, o serviço ilegal sai por R$ 60. Já em Santa Cruz e Campo Grande, a gatonet custa R$ 80 por mês. Em todos os casos, mesmo que o morador não tenha usado o sinal durante o mês, o valor tem de ser quitado.

José Carlos tentou enfrentar a tirania. Como, trabalhando das 8h às 22h, só conseguia juntar no máximo R$ 200 num dia, ele juntou seus colegas motoristas para ir à 30ª DP (Marechal Hermes) denunciar os milicianos. Três meses depois, na noite de 11 de novembro, o fretista foi executado com 12 tiros numa emboscada em Marechal Hermes, a pouco mais de um quilômetro do mercado.

Milicianos: Faustão, morto em Santa Cruz, é nº2 de Zinho; que, por sua vez, herdou a liderança da milícia do irmão, Ecko — Foto: Reprodução

Além de fretistas, camelôs, barraqueiros de praia, vendedores ambulantes, flanelinhas e até jovens e adolescentes que vendem balas e doces em sinais de trânsito também são obrigados a pagar taxas aos paramilitares. A folha de pagamento das milícias, no entanto, é diversificada: no outro extremo, estão empreiteiras com faturamentos milionários e obras espalhadas pelo país e sofisticadas empresas de energia solar, que pagam até R$ 70 mil de pedágio aos criminosos.

O aumento no leque de atividades fez o faturamento da milícia explodir. Em 2008, segundo estimativa do delegado Marcus Neves à CPI das Milícias, o grupo paramilitar que dominava Campo Grande e Santa Cruz faturava R$ 4,6 milhões mensais — em valores já corrigido. Em 2021, uma investigação da Polícia Civil apontou que o montante triplicou e chegou a R$ 15 milhões.

Os negócios da milícia

Prédios em construção na Muzema, área dominada por milícia — Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo



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