quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Nos EUA e no Brasil, é chegada a hora de ser intolerante com a intolerância



Enquanto faço este comentário, não sei se vai mesmo se tornar realidade aquilo que dá como certo boa parte dos que acompanham a apuração das eleições americanas: a vitória do democrata Joe Biden. Mas de outra coisa eu sei — e sobre isto não tenho nenhuma dúvida: a derrota de Donald Trump será um alento para a democracia do mundo. Se acontecer, tal alento será determinado por alguns poucos milhares de votos, numa disputa com quase 150 milhões de eleitores. Observem: nessa hipótese, o acaso estará a estender a mão para o pacto civilizatório.

Ao longo de quatro anos, o atual presidente dos Estados Unidos deixou claro reiteradas vezes por que não reúne condições intelectuais, morais e políticas de ser nem o gerente de um simples botequim. Que tenha se tornado o homem mais poderoso do planeta evidencia, de maneira insofismável, que o regime democrático ainda não conseguiu ser suficientemente eficaz para conter a ação de pistoleiros que atentam contra a sua própria existência.

Infelizmente, ditaduras sabem proteger seus próprios interesses esmagando a contestação, a diversidade e a pluralidade, impedindo que vozes alternativas se levantem. E, por óbvio, trata-se sempre de impor à maioria a vontade e os interesses da minoria de onde sai a elite dirigente. Em regimes de inspiração fascista, tenham lá a cor local que for, não se dispensa nem mesmo a existência de uma massa fanaticamente mobilizada contra inimigos definidos pelo regime, de modo que vontades tirânicas podem até se confundir com a voz popular.

As ditaduras sabem muito bem o que protegem. As democracias, ao contrário, nem sempre têm muita clareza sobre o objeto de seu desvelo. Afinal de contas, elas existem para quê? Por mais que a pergunta pareça básica, primitiva, "principista" — se me permitem o neologismo —, é preciso que comecemos a formular uma resposta clara para essa questão.

Será que as democracias estão aí apenas para assegurar a pluralidade de ideias, pouco importando quais sejam elas? As tiranias sabem muito bem por que precisam conter a liberdade de crença, de expressão e de organização. Se ela existisse, não existiria a ditadura. Assim, ao se estabelecer a verdade útil, imposta como verdade necessária, assegura-se a sobrevivência do próprio regime.

E as democracias? Será que elas podem ser tão livres a ponto de permitir que se organizem aqueles que, se vitoriosos, atuarão contra o próprio sistema que os elegeu? Nunca foi tão importante, como agora, responder a essa pergunta — em tempos em que, mesmo nas ciências da natureza, vai se firmando a falácia de que a verdade é mera questão de opinião.

Nos EUA, no Brasil e em toda parte, forças trevosas, que vocalizam aspirações de supostas maiorias silenciadas, se organizam contra aquela que é a essência da própria democracia. Afirmando-se como uma das expressões da pluralidade, pregam abertamente o fim da própria pluralidade. Reivindicando seu direito à liberdade de expressão, advogam, sem pudor, a censura. Em nome de uma suposta liberdade religiosa, pretendem transformar em discriminação de Estado tudo aquilo que seu Deus obtuso e fundamentalista não abraça.

A isso, infelizmente, no Brasil e mundo afora, a democracia não tem sabido responder a contento. O sistema tarda ainda para acionar os mecanismos que reprimam as vozes liberticidas que atentam contra a própria existência do regime. Vejam lá o que se passa com aquele bucaneiro que está à frente daquela que ainda é a nação mais poderosa da Terra.

Nesta quarta, uma milícia armada ameaçava paralisar a contagem de votos no Arizona depois que começou a se caracterizar a vantagem do democrata Joe Biden — e por estreita margem. E estreita será a vitória de qualquer um dos candidatos. Mas é preciso que digamos a nós mesmos com clareza: é mentira que qualquer uma das duas soluções represente a reiteração dos valores da democracia americana — ou da democracia ela mesma.

A despeito das deformações que o regime democrático exibe hoje nos Estados Unidos, e são muitas, há um postulante — Joe Biden — que aceita jogar segundo as regras que estão definidas. E há o outro, Donald Trump, que pretende se impor ao arrepio do pacto civilizatório. Lá e aqui, cumpre que nos perguntemos: o que ganha a democracia ao permitir, em nome da tolerância, a voz daqueles que querem solapá-la? Chegou a hora de ser intolerante com os intolerantes.

Por Reinaldo Azevedo

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