terça-feira, 3 de novembro de 2020

A democracia americana vive seus dias de Venezuela, Ucrânia e Rússia


Donald Trump e Joe Biden: presidente, que disputa a reeleição, resolveu atacar favoritismo de rival nas pesquisas acusando fraude. Sem evidências, como de hábito Imagem: Brendan McDermid/Reuters; Kevin Lamarque/Reuters

"Como ucranianos, russos e venezuelanos, os americanos vão para essas eleições sem saber se poderão registrar seu voto, se o voto será contado, se o candidato com maior número de votos vencerá e se haverá violência quando os resultados forem anunciados. Impensável nos EUA de apenas alguns anos atrás".

A afirmação é do Steven Levitsky, autor, com Daniel Ziblatt, do livro "Como as Democracias Morrem", que aborda a ascensão do populismo de extrema direita no mundo e as ameaças que isso implica para o regime democrático. Ambos são professores de ciência política da Universidade Harvard. O livro, claro!, dedica muitas páginas às diatribes de Donald Trump.

Embora os autores apontem na obra o comportamento nocivo à democracia do atual presidente, nem a eles ocorreu que Trump pudesse simplesmente não reconhecer o resultado das urnas se estas não confirmarem a sua reeleição. Pior: gente do seu entorno vazou para a imprensa que, se os primeiros números dos votos presenciais lhe derem maioria nos chamados estados-pêndulos, ele pode declarar a vitória à revelia da apuração.

E é nesse ponto que a irresponsabilidade de Trump pode fazer com que a eleição americana degenere em conflito sangrento. Estima-se que mais de 150 milhões de eleitores participem do pleito neste ano, contra 138,8 milhões em 2016. Quase 100 milhões já anteciparam seu voto: 35,5 milhões presencialmente, e 62,1 milhões pelo correio.

No ataque sistemático que faz às instituições, Trump tem afirmado que o voto por correio, que é legal nos EUA desde a Guerra Civil, embute a possibilidade de fraude. Ainda que a prática possa nos parecer estranha, é um tradição sólida naquele país. O Oregon, por exemplo, só vota à distância. O atual presidente intui, no entanto, e com ele concordam todos os especialistas, que os votantes pelo correio sejam majoritariamente democratas.

Quando um político está disposto a afrontar as regras do jogo caso derrotado, o sistema eleitoral é sempre um dos alvos, e se faz a acusação de praxe: fraude. Bolsonaro e suas milícias digitais resolveram atacar a votação em urna eletrônica, um dos poucos exemplos que o Brasil tem a dar ao mundo. E, ora vejam!, o "Mito" se antecipou a Trump: chegou a afirmar que qualquer resultado que não fosse a sua vitória seria fraudulento.

Ainda em março deste ano, às vésperas de protestos de seus milicianos contra o Congresso e o STF, afirmou nos EUA que tinha provas de que vencera a eleição no primeiro turno. Elas nunca foram apresentadas, e ele nunca mais voltou ao assunto. Nem tinha como. Estava mentindo.

Se um sistema claro de votação direta, em que cada eleitor vale um voto para o Executivo, como o nosso (para a composição da Câmara, não!), é alvo de chicaneiros, tanto mais vulnerável à agressão vigarista se torna o modelo americano, que exibe sinais claros de esclerose e hoje milita contra seu propósito declarado.

Os EUA contam com 435 deputados e 100 senadores. O Colégio Eleitoral espelha esse número, acrescido de 3 representantes do Distrito de Columbia. Assim, 538 delegados escolhem o presidente. O candidato que vencer a eleição num Estado leva todos os representantes que cabem àquela unidade da federação. Há duas exceções: Maine e Nebraska mandam delegados proporcionais à votação de cada candidato. Torna-se presidente quem conquista ao menos 270 delegados. Em caso de empate, a Câmara, que elege também agora 435 deputados para um mandato de dois anos, escolhe o presidente. Aconteceu duas vezes apenas: 1800 e 1824.

Não! Um indivíduo não corresponde a um voto nos EUA quando se trata de eleger o presidente. O despovoado Wyoming tem direito a três delegados, com uma população de 580 mil pessoas. A Califórnia, por seu turno, manda 55 para o pleito, com 40 milhões de habitantes. Para que os cidadãos de um de outro tivessem o mesmo peso, a Califórnia teria de contar com 207 delegados. Ou por outra: cada eleitor do Wyomen vale 3,8 vezes o da Califórnia.

O objetivo dos reverenciados "pais fundadores da pátria" ao criar o colégio eleitoral? Manter a unidade da federação, não exatamente fazer a vontade do povo. Em 2016, Trump perdeu a eleição para Hillary Clinton, em números absolutos, por quase 4 milhões de votos. Um sistema que permite que o derrotado governe depende em excesso do caráter desse governante para não entrar em crise. O governante, no caso, é Trump. Então é crise.

Por Reinaldo Azevedo

Nenhum comentário: