terça-feira, 18 de abril de 2017

AS DIVINAS DE ÉBANO!


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Cesar Barbieri[1]

“Meu coração traiçoeiro
Batia mais que o bongô
Tremia mais que as maracas
Descompassado de amor...” [2]






     Em 1958, logo após a morte de minha mãe, a Professora Diva Barbieri, tinha eu cinco anos de idade quando mudei-me, junto com os demais familiares, para a Rua 14 de Abril. Lá, tínhamos como vizinhos, mais próximos, as famílias de Dona Zarife e Seo Giordano, com a inesquecível Broto; a atraente Ígnea com sua enérgica mãe, Dona Aurora; bem defronte, Dona Thereza Mantovani e sua progenitora, Dona Edwiges, que carinhosamente chamava de Vovó Dugive; do Seu Geraldo Corrêa, o Geraldo da Light, pai da gentil e graciosa Léa; Dona Pureza, com seu dedicado filho Godofredo, Dona Neli, do Clóvis, mãe da bela e dengosa Edna e do intrépido Joãozinho, e outros mais convivas da pacata Caçapava e da fervilhante rua que, em seu nome, rememorava a data da fundação da cidade.

     Mudamos para uma casa antiga. Não era um elegante e imponente casarão como os do Largo da Matriz ou da Praça da Bandeira, onde residia a aristocracia taiada, mas uma construção modesta, com cinco metros de pé direito, com forro de madeira e paredes de taipa pintadas de creme, quatro grandes janelas, com venezianas, separadas por uma porta de duas folhas, com um portão de madeira, em uma das extremidades, todos na cor marrom. Era a, memorável, casa de número 187, onde vivi a minha infância e, praticamente, toda a minha adolescência.

     Dessa casa e dessa rua, muitas lembranças, ainda, trago comigo. Lembro-me dos jogos de queimada, pegador, bandeirinha, de peteca (feita em casa), quando brincava, dentre outros caríssimos amigos, com a bela Lúcia Aguiar, Marilisa e Marcos Botan, Lucilei (por pouco tempo, pois fora assassinada pelo pai, em tenra idade), Broto, Sueli, minhas irmãs Valéria e Carminho; lembro-me de algumas poucas “guerras de rua”, jogos de futebol, caçadas de passarinho (realizadas com estilingue e mamona), das caçadas ao içá, atividades essas que contavam, dentre outros, com o protagonismo do, carismático, Paulo Vieira (morador da rua vizinha, mas que estava sempre por lá), de João (da Guiomar), Carlinhos Albernaz, Mané, Klebinho; lembro-me, também, de Seo Lorenzo e Dona Enriqueta, digno e guerreiro casal de espanhóis, e de seus filhos Lorenzo e Enriquito, o filho caçula daqueles valorosos imigrantes com quem, apesar de ser mais novo do que eu, estabeleci uma intensa amizade. 

     Quanta boa lembrança tenho desse momento de minha existência! Não apenas de pessoas, mas, também, de fatos, intenções, valores, sentimentos, ocasiões, conselhos, orientações, desejos, amores, encontros e desencontros, da carroça de leite, do cheiro de pão quente da padaria da Dona Maria e Seu Pedro Carrasco, do bar do Seu Balão. Lembro-me, ainda, da polêmica Rua do Sapo (temido caminho das boiadas que se dirigiam ao matadouro municipal) e do Geraldinho. Impossível esquecer a simpatia, cortesia e calma ao caminhar de Clovinho - atributos esses herdados, sem dúvida, de Dona Maria e de Seo Olimpinho, bem como do alucinado movimento da oficina do Seu Santinho. Como não me lembrar do som do piano, nas aulas ministradas pela minha tia-avó, a professora Amasília de Castro, principalmente quando a antiga caixa musical propagava as ondas sonoras das escalas musicais executadas, magistralmente, pela inigualável Cidinha Reis, em suas extasiantes aulas de harmonia. Como seria possível esquecer-me do barulho do trem e do apito da fábrica?

     Sim, o apito da fábrica! Como, anteriormente, morava na Av. Cel. Manoel Inocêncio, não chegava a ouvir o surpreendente apito que, além de pautar os operários e as operárias da Cia. de Aniagem de Caçapava (posteriormente acrescentou-se a função de tecelagem), a popular “fábrica de juta”, marcavam as vidas dos moradores ao seu redor. Para muitos de seus vizinhos, também, tal sinal convocatório estava intrinsecamente ligado ao cotidiano de suas famílias, pois acordavam, almoçavam e, até, jantavam conforme o horário em que soava o seu apito.

     Comigo, também, tal sinal sonoro interferia nos meus afazeres e compunha de igual forma o meu cotidiano. Confesso que o primeiro apito, o das seis horas, nem sempre eu ouvia, mas os demais não passavam despercebidos, principalmente aquele que marcava, diariamente, o final da jornada de trabalho, pois no momento em que ouvia o seu som, nesse horário, largava tudo que estava a fazer e corria a disputar um lugar na janela de casa (onde já haviam se estabelecido minhas tias e minhas irmãs) para assistir, junto com elas, o cortejo fremente protagonizado pelos trabalhadores e trabalhadoras “da juta”, que, após longa e extenuante jornada, se encaminhavam, finalmente, para suas casas. 

     Dessa janela tínhamos a oportunidade de observar, como de um mirante, os componentes dessa procissão de homens e mulheres trabalhadores. Dessa privilegiada frisa, ao longo do tempo, por exemplo, víamos passar um jovem e uma jovem que vinham conversando com muito entusiasmo e, algum tempo depois, já caminhavam de mãos dadas, amorosamente; depois abraçados, afetuosamente; logo, logo, a moça, ainda abraçada com ele, caminhava grávida... Assim, tivemos a oportunidade de acompanhar a evolução de vários casos de amor, ou o estado de saúde de alguns senhores e senhoras que começavam a se ausentar frequentemente do trabalho e, passados alguns dias, tínhamos a notícia de seu falecimento, ou ainda ter conhecimento da desventura de alguns que eram demitidos e que, depois, os víamos (poucos, lamentavelmente) exercendo outras atividades pela cidade.

     Nesse convívio com pessoas tão especiais, vivenciando momentos de rico aprendizado, com essa enorme diversidade de seres humanos e situações, muitas vezes inusitadas, o tempo foi passando e com treze anos de idade já fazia muita coisa “de gente grande”, e uma delas era ir aos bailes da Associação - isso quando o tal do “juizado de menores” não estava lá para acabar com alegria dos menores de quatorze anos de idade. Era sempre, para mim, um momento de muita expectativa, pois além de gostar de dançar, eu sabia que lá estavam três jovens mulheres negras, que, desde o primeiro momento em que as vi, imediatamente, encantaram-me com tal intensidade que, mesmo após os bailes chegarem ao seu final, ainda, as carregava em mim até a próxima noite dançante.

   Negras altivas, simpáticas, elegantes, gentis, que me cumprimentavam sempre sorridentes, deixando transparecer que, mesmo após longa e extenuante semana de trabalho, ainda tinham a alegria em viver, como a pedra fundamental de suas existências. Belas mulheres que, mesmo só as observando de longe, tratavam-me com tanto carinho que chegava a pensar que os sentimentos que me moviam eram recíprocos e que, a cada sorriso, estavam marcando comigo um novo encontro, no próximo baile! Minhas musas negras, que mereciam, por certo, serem homenageadas com um retrato dos pintores mais importantes e já conhecidos, tais como Monet e Di Cavalcanti, ou captadas pelas lentes de Pierre Verger, Anigonni, Sebastião Salgado ou da jovem e talentosa fotógrafa baiana Elzinha Abreu. 

     Essas ocasiões me permitiram admirá-las cada vez mais, pois dançavam divinamente! E como dançavam! Tenho a impressão que Roger Garaudy, ao escrever o seu Dançar a Vida, as tenha visto nos salões de baile dançando qualquer tipo de música, qualquer que fosse o ritmo, com qualquer parceiro (fosse um pé de valsa ou um inseguro neófito), com a leveza, graça, espontaneidade e maestria que, sob as bênçãos de Terpsícore, fariam qualquer um dos mais competentes frequentadores do Bola Preta, do Elite, ou o próprio Zorba (o grego) cessarem suas danças para, maravilhados, apreciá-las.

     Muitas e muitas vezes, pensei em convidá-las para comigo dançar, porém a minha timidez e a falta de coragem impediram-me de desfrutar de momentos que, certamente, teriam sido encantadores e inesquecíveis! Mas, aprendi, com a Capoeira, que “o mundo é redondo” e que é preciso prestar muita atenção às “voltas que o mundo deu e às voltas que o mundo dá” e eis que, inesperadamente, as reencontrei, decorridos trinta anos, em um baile no Jequitibá, baile esse que compunha as atividades do evento intitulado “Dia do Caçapavense Ausente”, carinhosamente organizado por Dona Lourdes Mesquita, e, plagiando o poeta, com o meu coração traiçoeiro, batendo mais do que o bongô, tremendo mais que as maracas, descompassado de amor... Com elas, finalmente, pude dançar!

     Ah! Essas três filhas de Oxum, esplendidas mulheres que marcaram, definitivamente, minha existência e que, ainda hoje, continuam a encantar a todos que com elas convivem ou que passam a ter o privilégio de com elas estar. Sim... Esses três feixes de luz que receberam o nome de Rosa, Angelina e Janete, carinhosamente conhecidas pelos “pobres mortais” como “as irmãs Leite”!

Vida longa a essas divinas mulheres de ébano! Evoé! 

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[1] Cesar Augustus Santos Barbieri é Mestre em Educação, na área de Ciências Sociais e Humanas Aplicadas, pela Universidade de Brasília-UnB; Doutor em Educação, na área de Fundamentos da Educação, pela Universidade Federal de São Carlos-UFSCar e Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe-IHGSE

[2] João Bosco&Aldir Blanc, Dois pra lá, dois pra cá, 1972

2 comentários:

Unknown disse...

Parabéns. Lindo texto.

Unknown disse...

Lindo texto.Parabéns.
Bailei muito com a Rosa.