quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Nossa Senhora de máscara: um reaça místico no templo da razão em Aparecida



É claro que os eventos são, por si, saborosos. Até colaboram com a crônica política, que nem precisa se esforçar para tirar leite de pedra no feriadão, não é mesmo? O contraste já vem pronto para quem apela a alguma ciência e a um pouco de história: enquanto a Igreja Católica prega o apreço pela ciência, a política vai a Aparecida levando misticismo primitivo.

Não que isso seja novo na Igreja Católica, convenham. Fez das suas, claro!, mas teve e tem os seus doutores. Santo Tomás de Aquino concentra mais lógica e racionalismo do que parte considerável dos tratados sobre ciência. A "Suma Teológica" não prova a existência de Deus, mas evidencia como o pensamento pode ser engenhoso quando se tenta provar... a existência de Deus.

Observem como o colunista tergiversa, né? "Meu Jesus Cristinho" (apud Manuel Bandeira)! Terei de falar de Jair Messias Bolsonaro — que poderia, ao menos, não ter o "Messias" no nome para dificultar a tarefa de fazer gracejo amargo com os falsos profetas. Mas vamos lá.

O cara foi a Aparecida. Quer um evangélico "terrível" — e, sim, ele conseguiu um! — no Supremo, mas foi tentar ganhar as franjas dos devotos de Nossa Senhora. Antes da sua chegada, na principal cerimônia do dia, a das 9h, o arcebispo Dom Orlando Brandes mandou a real.

A santinha consola. Mas não cura Covid-19. Não impede a contaminação por vírus. A Igreja Católica convive com a ciência há muito tempo já. Tem a maior rede de universidades do mundo. Nos seus laboratórios, Deus está na ciência, como estava na "carne seca bem apimentada" da Branca Dias de "O Santo Inquérito", de Dias Gomes. Deus é onipotente para as causas possíveis, como disse Santo Tomás, aquele que vale por um tratado sobre a racionalidade.

Milagres por hora, por minuto, só mesmo nas igrejas mais novas do que o uísque que eu bebo. É coisa de embusteiros e charlatões. O paraplégico que foi escolhido pela fé — não adianta tentar escolhê-la — encontrará conforto. Mas não vai andar.

Deus não é uma caixa de supermercado: "Pague e leve". Não é como os "pegue-pagues do mundo" da "Guita", de Paulo Coelho, que tem mandado bem, e Raul Seixas. Deus pode mudar o seu entendimento do mundo. Mas o mundo muda por aquilo que podemos fazer para mudá-lo. Volto a Dom Orlando Brandes:
"Para ser pátria amada, seja uma pátria sem ódio. Para ser pátria amada, uma república sem mentira e sem fake news. Pátria amada sem corrupção. E pátria amada com fraternidade. Todos irmãos construindo a grande família brasileira".

O pateta a que chamam "Mito", e também isso se ouviu em Aparecida, em meio a vaias, ainda não havia chegado. O arcebispo também disse: "Pátria amada não pode ser pátria armada". O lema do governo Bolsonaro, como se sabe, é "Pátria Amada Brasil". O religioso nem precisou apelar às sutilezas de Santo Agostinho ou às lições morais de São Basílio Magno.

Conforme contabilidade do Instituto Sou da Paz, como lembrou o Estadão, o ogro do misticismo de extrema direita promoveu 31 alterações nas normas relativas a porte de armas. A posse de armamento explodiu: 67% de aumento só no primeiro semestre de 2021. Os registros cresceram mais do que 100% em São Paulo e em outros oito Estados.

Os homicídios estavam em queda. Voltaram a crescer em 2020 (4,8%), ano em que se contaram 186.071 novos registros de aquisição de armas de fogo — crescimento de 97,1% em relação a 2019. Naquele ano, elas responderam por 72,15% dos homicídios dolosos; em 2020, por 78% dos 50.033 casos.

Somos a pátria mundial da carnificina armada, superando países que experimentam guerra civil, guerrilha ou terrorismo. E daí? Aquele que foi homenagear a Santa em Aparecida considera que arma é liberdade e que, de certo modo, é superior ao feijão. Faz sentido: Jesus não tem estômago na inflação do "crescimento em V" de Paulo Guedes, aquele que sabe como alimentar os mendigos: com a sobra dos restaurantes. Nota à margem: Sergio Moro, o pré-candidato de alguns entusiasmados da imprensa, condescendeu com a legislação homicida.

O arcebispo disse mais:
"Mãe Aparecida, muito obrigado porque na pandemia a senhora foi consoladora, conselheira, mestra, companheira e guia do povo brasileiro que hoje te agradece de coração porque vacina sim, ciência sim e Nossa Senhora Aparecida junto salvando o povo brasileiro".

Em Aparecida, Bolsonaro usou a máscara, uma das "agressões", segundo ele, à liberdade individual. São poucos os "terrivelmente católicos" que aceitam a folia do vírus para fazer as vontades do "Mito". A propósito: seu ministro da Saúde, o tal Marcelo Queiroga, a considera uma proteção volitiva. Ele a comparou à camisinha. Ignorou como se transmite o HIV e como se propaga o SARS-CoV-2. Na maioria dos casos, parceiros podem se negar a manter relações sexuais com quem não se protege. Não é o caso com os delinquentes que se negam a usar máscaras. Eles querem nos impor o conúbio virótico. É uma espécie de estupro moral. Faz sentido para o presidente que já considerou que a violação sexual é uma distinção, um "merecimento", um mérito mesmo.

A taxa de transmissão de Covid-19 no país é a menor desde abril do ano passado, segundo aponta o Imperial College. Contou-se nesta terça um total de 601.442 mortos. A queda, por óbvio, se deve à vacinação, contra a qual Jair Bolsonaro, na prática, ainda luta. A imunização chegou tarde e de modo desordenado. Mas a estrutura do SUS, que era um dos marcados para morrer nesse governo, a fez avançar.

O total de mortos vale por 12 anos de vítimas de homicídio — considero a média de 50 mil assassinados por ano. Um país que mata de vírus e bala.

Mas ele foi lá emporcalhar a fé. Não fosse Santo Tomás a conter o meu fervor místico, e pediria que Deus desse um jeito no cara.

Mas isso, leitoras e leitores, é mesmo com o voto. Escolham a vida. Contra as balas e o vírus.

E que a santinha proteja a fé dos que têm fé na ciência e na razão.

Por Reinaldo Azevedo

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