domingo, 3 de outubro de 2021

Michelle é farinha do mesmo saco patrimonialista



Descobriu-se que o Pronampe, programa lançado pelo governo para oferecer dinheiro com juros camaradas e condições adocicadas a micro e pequenas empresas durante a pandemia possui duas vias de acesso. Numa, o empreendedor vai a uma agência da Caixa Econômica Federal, entra na fila, toma chá de cadeira do gerente e tropeça na burocracia. Noutra, o felizardo toma um atalho, atravessa um tapete vermelho, encontra a porta da primeira-dama Michelle Bolsonaro aberta e entra sem bater.

Quem toma a primeira trilha precisa rezar para que o dinheiro saia antes que seu negócio vá à breca. Reportagem da revista Crusoé revela que os amigos com acesso ao balcão de Michelle são mais afortunados. Arrolados numa lista de clientes preferenciais, eles saltam todos os obstáculos e chegam ao gabinete do presidente da Caixa, o bolsonarista Pedro Guimarães, por meio de mensagens encaminhadas por uma assessora da Presidência da República.

Em inspeção de rotina, auditores da Caixa apalparam a lista de apadrinhados de Michelle. Numa das mensagens enviadas pela assessoria da primeira-dama, lia-se o seguinte: "A pedido da sra. Michelle Bolsonaro e conforme conversa telefônica entre ela e o presidente Pedro, encaminhamos os documentos dos microempresários de Brasília que têm buscado créditos a juros baixos."

Os auditores manusearam documentos internos da Caixa. Um deles anotava: "Cliente veio através de lista de empresas indicadas pela primeira-dama Michele Bolsonaro ao presidente Pedro Guimarães." Outro dizia: "Direcionamos para análise e tratativas necessárias solicitações de microempresários de Brasília enviadas pelo gabinete da primeira-dama Michelle Bolsonaro."

Amiga de Michelle, a doceira Maria Amélia Campos obteve para sua confeitaria empréstimo de R$ 518 mil. E ainda convenceu a mulher de Bolsonaro a incluir no rol de beneficiários um salão assentado na Asa Sul de Brasília. Sócio do empreendimento, Waldemar Caetano Filho disse à reportagem da Crusoé que "o contato com a primeira-dama foi fundamental. É o famoso QI [quem indica]". Dono de uma floricultura brasiliense que tem Michelle como cliente, Rodrigo Resende também foi favorecido pelo QI elevado da primeira-dama, apontada na auditoria da Caixa como uma PEP, acrônimo de "pessoa exposta politicamente."

Em nota oficial, a Caixa declarou que todas as operações de crédito do Pronampe passaram por "rigorosa análise de riscos do banco, que ocorre mediante processo totalmente automatizado, independente e sem interação humana." Para o Ministério Público Federal, o rigor e a impessoalidade da Caixa só valem até certo ponto: o ponto de interrogação. Na dúvida, procuradores que conduzem inquérito aberto para investigar suspeitas de influência política na Caixa decidiram incluir Michelle no processo.

Mal comparando, sucedeu com o programa de créditos da Caixa fenômeno análogo ao que infectou o processo de aquisição de vacinas contra a Covid. O que parecia ser apenas negacionismo revelou-se um caso de negocismo. A Pfizer e o Butantan enviaram dezenas de memorandos e e-mails para o governo. Deram com muitas portas na cara antes de assinar contratos com o Ministério da Saúde. Esgueirando-se pelos atalhos da burocracia brasiliense, a indiana Covaxin subiu pelo elevador privativo e encontrou portas escancaradas para um contrato mutretado de R$ 1,6 bilhão, que teve de ser cancelado depois que a picaretagem virou escândalo.

Numa de suas manifestações para os devotos do cercadinho do Alvorada, Bolsonaro proclamou certa vez: "Eu sou a Constituição!" A frase desceu à crônica política de Brasília como uma versão tupiniquim do célebre "l'État c'est moi!". O presidente, naturalmente, não é a Constituição. Mas sua declaração serviu para acentuar a percepção de que Bolsonaro traz o patrimonialismo enterrado na alma.

Aos pouquinhos, Michelle vai se revelando farinha do mesmo saco patrimonialista em que se misturam os membros da família Bolsonaro. A exemplo do marido, madame jamais sentiu a necessidade de explicar os R$ 89 mil que o operador de rachadinhas Fabrício Queiroz depositou em sua conta. Agora, ao virar matéria-prima para investigação do Ministério Público, a primeira-dama consolida-se como integrante de uma organização familiar cujo futuro está sub judice, pendente de apreciação judicial.

Tomado pelas pendências que acumula no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral, Bolsonaro tem a aparência de um delinquente em série. Acumula pelo menos sete processos. Quatro no Supremo, onde correm as investigações sobre aparelhamento da PF, prevaricação no caso da vacina Covaxin, ataques às urnas eletrônicas e vazamento de inquérito sigiloso. Outros três no TSE, onde tramitam o inquérito das mentiras sobre urnas eletrônicas e um par de pedidos de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

A rachadinha no gabinete de Flávio resultou numa denúncia em que o primogênito é acusado de peculato, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Carlos arrasta pela conjuntura um inquérito que prenuncia a repetição da trajetória do irmão. Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, é alvo de uma investigação preliminar sobre a utilização de R$ 150 mil em dinheiro vivo na compra de dois apartamentos no Rio. Jair Renan, o Zero Quatro, é investigado pelo Ministério Público Federal sob a suspeita de cometer o crime de tráfico de influência ao abrir a maçaneta de ministros para empresários.

Os Bolsonaro, uns a cara esculpida e escarrada dos outros, firmam-se como uma família dura de roer. A dinastia presidencial considera-se autorizada a transpor as limitações constitucionais que atrapalham o gerenciamento do empreendimento familiar. Nesse ambiente, Michelle sente-se à vontade para dar carona aos interesses dos amigos.

Por Josias de Souza

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