segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Governar é possível (Editorial do Estadão)



Não é preciso ter um Congresso excepcional para que o regime democrático funcione. A separação de Poderes dispensa utópicas perfeições, pois há limites e controles

Na tentativa de justificar a falta de resultados, o governo Bolsonaro difunde a ideia de que as instituições – em especial, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso – impedem o presidente da República de governar. Com os obstáculos e resistências que enfrenta, o chefe do Executivo federal estaria impossibilitado de realizar seu programa de governo.

Para começar, a desculpa não se aplica a Jair Bolsonaro, nem mesmo em tese. Ele nunca apresentou um programa factível de governo, tampouco se envolveu com as pautas que supostamente seu governo apoia, como as privatizações e a reforma da administração pública. De toda forma, muito além do bolsonarismo, há quem pense que, para o presidente da República de fato governar, seria preciso ter outra Constituição, outro Supremo e, muito especialmente, outro Congresso.

O argumento é um tanto perigoso para o regime democrático, uma vez que exclui a responsabilidade do governante em relação ao seu governo e, para piorar, atribui a ineficácia do Executivo à separação de Poderes. Sob essa lógica, tivesse o presidente da República mais poderes e recaíssem sobre ele menos controles, as coisas seriam diferentes. Ou seja, a argumentação encaminha-se, velada ou explicitamente, para o autoritarismo.

A ideia é, no entanto, uma falácia. Quando quer, o presidente da República é capaz de governar, implementando seu programa de governo e suas propostas. Logicamente, não será capaz de realizar tudo aquilo que se propôs. Mas conseguirá promover, a despeito de todas as dificuldades e oposições, muitos projetos e muitas mudanças.

A história recente do País é repleta de casos de sucesso do Executivo na promoção de sua agenda no Congresso. Veja-se, por exemplo, a aprovação da legislação relativa à responsabilidade fiscal durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Poucas matérias suscitam mais oposição do que a criação de limites para os gastos públicos. Mesmo assim, sob a coordenação política do presidente Fernando Henrique, o Congresso aprovou diversas medidas – em destaque, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) – que impunham novas exigências para as finanças públicas. Foi preciso negociar muitos pontos, não se conseguiu aprovar tudo, mas foi instaurado o arcabouço jurídico que propiciou um novo patamar de profissionalismo na gestão fiscal do Estado brasileiro.

Seria ingenuidade, sem correspondência com os fatos, pensar que o Congresso dos tempos de Fernando Henrique Cardoso era muito melhor do que o atual. Os deputados e senadores de então não estavam mais preocupados com a responsabilidade fiscal do que os de agora, que aprovaram recentemente medidas que dificultam o equilíbrio das finanças públicas. A diferença não está no Congresso, em uma suposta responsabilidade que teria se perdido ao longo do tempo, mas no Executivo. Com Fernando Henrique Cardoso, o Palácio do Planalto trabalhava séria e continuamente pela responsabilidade fiscal.

A afastar qualquer pretensão de idealizar o Congresso dos tempos do presidente Fernando Henrique, basta lembrar que, na época, nem existia a Lei da Ficha Limpa. Portanto, uma das legislações mais responsáveis em matéria fiscal foi aprovada por uma daquelas legislaturas que causavam grande indignação na população – motivando, entre outras coisas, o projeto de iniciativa popular a respeito da inelegibilidade de pessoas condenadas pela Justiça.

Semelhante eficácia do Executivo federal foi vista no governo de Michel Temer. Em 2016, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos. Na época, Michel Temer tinha baixa aprovação popular, e mesmo assim conseguiu instaurar a medida saneadora.

Tal histórico é muito alentador, especialmente para depois de 2022. Quando se quer, quando se colocam os meios, é possível governar. Não é preciso ter um Congresso excepcional para que o regime democrático funcione. A separação de Poderes dispensa utópicas perfeições, pois há limites e controles. Basta que cada um faça a sua parte. Ao Executivo compete governar.

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