segunda-feira, 16 de maio de 2022

O ‘Centrãoduto’ e as mazelas do Brasil (Editorial do Estadão)



Quem elegeu Jair Bolsonaro em 2018 tinha lá seus motivos. Um deles, por certo, a expectativa de que o futuro presidente daria um passo à frente na tão sonhada modernização do País. Nem poderia ser diferente: durante toda a campanha, Bolsonaro vestiu o figurino liberal de alguém que faria não só as reformas de que o Brasil tanto precisava, mas também oxigenaria as relações políticas e a máquina pública, rompendo com os vícios do passado, especialmente a trevosa era lulopetista.

Modernizar o Brasil, reduzir o tamanho do Estado e abrir o País para o mercado mundial foram promessas de Bolsonaro nas eleições de 2018 − e, por serem o exato contraponto à terrível perspectiva da volta do PT ao poder, lhe renderam a vitória, com mais de 57 milhões de votos. Promessas embaladas no discurso de acabar com o pernicioso toma lá dá cá tão característico da política brasileira.

Resgatar esse enredo se faz necessário diante da notícia, publicada no Estadão, de que parlamentares do Centrão, hoje a força política reinante sob Bolsonaro, articulam a aprovação de um projeto bilionário para construir gasodutos no País. Chamada de Brasduto, a iniciativa vem sendo tentada desde 2015 e já ganhou até apelido: “Centrãoduto”.

A proposta consiste em destinar recursos dos lucros do pré-sal para financiar gasodutos capazes de viabilizar a instalação de usinas termoelétricas nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste − em locais onde não há usinas justamente porque não há gás por lá. O investimento chegaria a R$ 100 bilhões.

Do ponto de vista da matriz energética brasileira, o projeto não se sustenta. Primeiro, porque o País precisa gerar energia onde os consumidores estão ou, no mínimo, onde haja linhas de transmissão para levar a energia até quem vai utilizá-la. No caso das termoelétricas alimentadas por gás natural, por causa do seu custo mais alto, o investimento só faria sentido para atender fábricas e polos industriais. Segundo, porque usinas termoelétricas a gás, embora menos poluentes do que as usinas a carvão, estão longe de ser a solução em termos ambientais. Qual seria, então, o motivo para priorizar um projeto energético que não atende a requisitos técnicos, econômicos nem ambientais?

Coincidentemente, a rede de gasodutos atende aos interesses do empresário Carlos Suarez, conhecido por ser o “S” da empreiteira OAS, da qual ele se desligou em 1996 para fundar um império de distribuição de gás, detendo participação em distribuidoras de gás canalizado. Suarez e seus sócios, conforme a reportagem, são os únicos detentores de autorizações para fazer a distribuição de gás no Distrito Federal e em sete Estados do Centro-Oeste, Nordeste e Norte. À falta de gás natural para ser explorado nessas regiões, a resposta seria o “Centrãoduto”.

Infelizmente, a falta de princípios republicanos e modernizadores parece não ter fim. A estratégia pensada para aprovar tamanho disparate no Congresso seria recorrer aos conhecidos “jabutis”, isto é, incluir dispositivos alheios ao projeto original, no caso, ao PL 414, que trata da modernização do setor elétrico − algo feito despudoradamente também na votação da Lei de Capitalização da Eletrobras, quando os parlamentares, com os votos do Centrão, aprovaram a construção de usinas a gás em Estados onde o conglomerado de Suarez atua, além do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Assim, viabilizar o “Centrãoduto” seria o próximo passo.

Como tudo o que é ruim pode piorar, a estratégia de votação iria além do tradicional “jabuti”. É isso mesmo: sob Bolsonaro, o Centrão acrescenta mais um termo à semântica política nacional: o “jabuti-surpresa”, emenda a ser proposta em plenário, no momento de votação da urgência do projeto de lei. Na prática, mais uma forma de levar parlamentares a votar − e aprovar − leis com trechos desconhecidos.

Por sorte, a proposta já recebeu críticas da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), assim como do Fórum das Associações do Setor Elétrico (Fase), embora não se saiba se seus argumentos serão ouvidos. São vozes que ecoam a generalizada constatação de que Bolsonaro não somente não entregou a modernidade prometida em 2018, como franqueou o poder ao que há de mais atrasado no País. Para a decepção de seus eleitores e prejuízo de toda a Nação.

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