quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Repudiar o abismo é 1º passo para vencê-lo; Lindôra esmaga lei e ciência



As manifestações da subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo ao Supremo, negando que Jair Bolsonaro tenha cometido crimes ao promover aglomerações sem máscara — usando dinheiro público — e expondo duas crianças ao risco de contaminação geraram indignação e revolta em várias frentes. Senadores resolveram agir. O mesmo se deu com colegas seus de MPF, também subprocuradores-gerais. Já volto ao caso. Mas quero comentar um aspecto em particular.

Na terça, dia em que a doutora enviava seus pareceres aos ministros Rosa Weber e Ricardo Lewandowski — respectivos relatores de duas notícias-crime —, Augusto Aras realizava reuniões com senadores para cuidar de sua recondução à PGR. E ele deve consegui-la sem grande esforço. Ainda que a PGR e o próprio procurador assistissem, impassíveis, à escalada golpista do presidente. É estupefaciente que assim seja. Em entrevista à Folha, que ainda comentarei, Aras tenta se defender. E evidenciou, uma vez mais, por que sua atuação é indefensável.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e um grupo de pares do Senado anunciaram que vão entrar com uma representação ao Conselho Nacional do Ministério Público. O que vai nos pareceres de Lindôra é coisa muito grave. Lembro o que dispõe o Artigo 127 da Constituição sobre o papel do Ministério Público:
"O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis."

Há uma lei que impõe o uso de máscaras em ambientes públicos. A doutora parece não considerá-la, assim, forte o bastante. Mas há o saber científico firmado, comprovado e inquestionável sobre a eficácia da máscara para reduzir o contágio — e cumpre lembrar que o país assiste à expansão da variante Delta, sabidamente mais contagiosa.

A ESTUPIDEZ SOBRE CIÊNCIA
Escreve Lindôra:
"Não é possível realizar testes rigorosos, que comprovem a medida exata da eficácia da máscara de proteção como meio de prevenir a propagação do novo coronavírus.
É que seria incabível envolver pessoas numa pesquisa científica e deixá-las, por determinado tempo, sem usar máscaras faciais, ou seja, possivelmente expostas ao contágio de doença que pode vir a ser mortal, somente para medir a efetividade de tais equipamentos de proteção individual.
Os estudos que existem em torno da eficácia da máscara de proteção, portanto, são somente observacionais e epidemiológicos. Dessa forma, não há, nem haverá pesquisa com alta precisão científica acerca do assunto.
Apesar disso, a Organização Mundial da Saúde, baseada nos testes científicos que foram realizados recentemente, na medida das possibilidades e apesar das limitações práticas, abandonou posicionamento anterior expresso e passou a recomendar o uso de máscara de proteção facial para diminuir a propagação do patógeno causador da COVID-19. A OMS reconhece, porém, que, além das máscaras faciais, outras medidas de prevenção devem ser tomadas conjuntamente "como parte de uma abordagem abrangente de 'Faça tudo'".

A única coisa que faz sentido nesse apanhado de sandices é o fato de que, com efeito, os cuidados não devem se limitar às máscaras. É preciso, também, evitar as aglomerações. E, sabidamente, o presidente as promove, como, de resto, apontam os peticionários originais da notícia-crime.

Mesmo com as graves responsabilidades que exerce, Lindôra ignora o que seja o saber científico e como ele funciona. Parte considerável das medidas protetivas que se tomam contra quaisquer doenças — e isto vale para qualquer campo do saber — nasce da dedução. A partir de premissas dadas como verdadeiras, porque testadas, chega-se a uma conclusão necessária, inescapável. E, com efeito, não é preciso que pessoas sejam expostas ao risco de morte para comprovar que determinadas práticas podem ser homicidas.

Se Lindôra estivesse certa, boa parte do saber científico que organiza o mundo deveria merecer apenas a classificação de mero raciocínio especulativo. O que vai acima é de tal sorte estúpido que me parece preferível, para Lindôra, que se duvide de sua isenção política. Não sendo assim, então estaríamos diante de um caso espantoso de ignorância que a inabilita para o cargo.

REITERO A QUESTÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA
A doutora está tão atrapalhada que manda ao Supremo um texto com suspeitas explícitas de analfabetismo, como neste trecho:
"Essa [não uso de máscaras] conduta não se reveste da gravidade própria de um crime, por não ser possível afirmar que, por si só, deixe realmente de impedir introdução ou propagação da COVID-19"

Como? Então não se pode afirmar que o não uso "deixe realmente de impedir" a contaminação? Lindôra sabe de língua portuguesa o que sabe de ciência, e as duas ignorâncias se juntam para justificar comportamentos do presidente que a lei define como crimes.

Quanto a ela dar de ombros para o mau uso do dinheiro público, dizer o quê?

SEUS PARES REAGIRAM
Membros do Ministério Público Federal também reagiram. Subprocuradores-gerais, colegas seus, pensam em recorrer a Conselho Superior do Ministério Público. Também a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) reagiu. Até porque está evidenciado que sem sempre a doutora é assim tão laxista no emprego da lei.

Lembrou o senador Randolfe Rodrigues:
"A posição de sua Excelência contradiz inclusive decisão anterior, que ela exarou quando pediu ao Superior Tribunal de Justiça que o desembargador Eduardo Almeida Prado, do Tribunal de Justiça de São Paulo, fosse investigado por passear em uma praia de Santos sem máscara. Bem faria Sua Excelência se tivesse mantido essa conduta correta que fez em relação ao comportamento do desembargador paulista. A decisão de ontem da doutora Lindôra Araújo contraria totalmente a ciência, as recomendações da Organização Mundial da Saúde, contraria as recomendações da nossa Agência Nacional de Vigilância Sanitária, contraria as recomendações do CDC dos Estados Unidos, contraria toda a lógica da ciência."

Os fatos falam por si.

AS CRIANÇAS
Se a estupidez do raciocínio é inaceitável, ao lado da desprezível aplicação seletiva da lei, as manifestações de Lindôra sobre as crianças expostas ao risco, por ação de Bolsonaro, mergulha no terreno do abjeto.

Observem como a subprocuradora-geral recorre a sutilezas da linguagem para, de algum modo, lançar no terreno da dúvida o que está documentado por fotos e vídeos inequívocos:
"Os noticiantes alegam que, por ocasião de visitas oficiais aos Municípios de Pau dos Ferros e Jucurutu, no Rio Grande do Norte, em 24 de junho de 2021, a autoridade noticiada teria descumprido norma sanitária local que tornara obrigatório o uso de máscara de proteção da facial, por força da epidemia de COVID-19.
O Presidente da República, em Pau dos Ferros-RN, teria retirado a máscara de proteção facial de uma criança que estava em seu colo. Por sua vez, em Jucurutu-RN, o Presidente teria incentivado uma criança de 10 anos, por meio de gestos, a retirar o equipamento de proteção do rosto, enquanto ela recitava uma poesia".

Vamos ver:
1: os noticiantes não "alegam". Eles informam. Os fatos aconteceram;
2: o presidente não "teria descumprido"; ele descumpriu;
3: Bolsonaro não "teria retirado" a máscara de uma criança; ele a retirou;
4: não "teria incentivado" outra a criança a fazê-lo; ele incentivou.

Não se aplica a linguagem da dúvida. Mas, claro!, Lindôra precisa relativizar o absurdo. Diz a doutora, numa manifestação que, não sendo pautada pela ignorância, corre o risco de ser cínica:
"Como não houve referência ao fato de o Presidente da República estar acometido de COVID-19 em tais oportunidades, as condutas a ele atribuídas não causaram perigo de lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal".

Como? As crianças só estariam expostas ao perigo se o próprio Bolsonaro estivesse contaminado? É isso o que nos informa, dadas as circunstâncias, tudo o que a ciência sabe sobre a doença?

A Procuradoria-Geral da República já estava no fundo poço havia tempos. Lindôra foi lá e abriu um alçapão.

Reitero a exortação: o Ministério Público é titular da ação penal, mas não do inquérito. Este pode ser aberto pelos ministros do Supremo ainda que a PGR se oponha. Que Rosa Weber e Ricardo Lewandowski o façam. Até para que se consolide para a história o particular momento por que passa o país.

O primeiro passo para sair do abismo é repudiá-lo.

2 comentários:

Anônimo disse...

.

LATRINA GERAL

Leis temos à beça.
As brechas, diabolicamente inseridas.
Tem dinheiro, poder? É amigo do rei?
Raposas generosas, togadas ou não,
Intermediam, agem e garantem
Num piscar de olhos, “Amigo,
A sua causa é justa. Fique tranquilo”
.

Governos à la milícia
E legisladores comprometidos com o ilícito
Rasgam as vestes de Thêmis, a Deusa da Justiça.
Absurdas brechas lhes favorecem e os
Lambedores de botas estão sempre a postos.


AHT
19/08/2021

AHT disse...

Nunca antes na história da república, um procurador geral e alguns dos seus subordinados foram tão flagrantemente serviçais de um miliciano presidente.

Estão conseguindo transformar o Estado brasileiro em um poço sem fundo?