Excelente e oportuno o artigo do ministro Gilmar Mendes, do Supremo, publicado na Folha desta quarta, em defesa do habeas corpus.
Claro! Não me escapa a ironia de que há algo de profundamente errado num país em que um membro da Corte Maior tem de vir a público para falar em favor daquele que é um dos pilares dos regimes democráticos e de direito.
Como lembrou o próprio Mendes, num país em que campeiam corrupção e violência, falar em defesa do habeas corpus — e, pois, dos devidos limites para que o Estado prenda alguém antes da condenação em definitivo — soa quase a provocação. Mas alguém tem de fazê-lo, ainda que seja ele, um ministro da corte suprema. Mesmo que seja eu, apenas um jornalista.
Como explicar ao comum dos mortais, sujeito a todo tipo de autoritarismo e violência, que manter alguém preso deve ser a exceção e que a regra é soltar porque, em essência, a luta realmente relevante é aquela do indivíduo contra o Estado? Se a este se concedem poderes absolutos para prender quem lhe der na telha, é o sistema de direitos individuais que vai para o brejo. Como deixar claro que não é esse o instrumento que conduz à impunidade?
Olhem aqui: com as vítimas de um sistema que consegue juntar exclusão e violência, admita-se, a argumentação é especialmente difícil porque sabemos que o cotidiano brutaliza e empurra as pessoas para as soluções simples e erradas para problemas difíceis.
O que lamento, no entanto, profundamente, é constatar que, nestes dias, a agressão ao modelo de garantias individuais parte mais dos setores identificados com os conservadores, com a “direita”, do que propriamente dos esquerdistas. Ou por outra: os direitos individuais, de que o habeas corpus é o símbolo principal, é o emblema, é hoje tomado como instrumento de impunidade por nossos liberais — falsos e mixurucas —, que, embora se vendam por bom dinheiro, valem uma nota de R$ 3.
Pior: na era em que certos setores acreditam que lhes basta ter um nas mãos um celular para que se tornem sábias, vemos se multiplicar nas redes sociais vídeos em que, em nome da cidadania, vomitam-se impropérios contra o sistema de garantias que nos diz, afinal, que não estamos numa ditadura. Não é fácil enfrentar esses tempos em que o moralismo burro, que chamo de “o túmulo da moral”, tomou o lugar do pensamento. O próprio ministro foi vítima, há dias, de uma agressão inominável.
Nem cabe perguntar se os que expressavam a sua “opinião” contra o habeas corpus se ocuparam minimamente da questão. Era visível que não! E que se note: não se tratava de pessoas esmagadas pela crueldade do cotidiano. Ao contrário. Elas apenas achavam que o ministro tinha de manter presos os indivíduos que elas acham que têm de estar presos — e, por contraste, não duvido, ficariam igualmente iradas se ele decidisse pela prisão daqueles que elas querem soltos… Vivemos tempos em que se quer um sistema judicial movido a quereres e a convicções, pouco importando o arcabouço legal. E, com raras exceções, a atuação da imprensa fica pouco a dever a essa gritaria rasa e estúpida.
Enquanto isso, e sou eu a dizer, não o ministro Gilmar Mendes, o grande sistema, que mantém a exclusão, a violência, a corrupção e a desigualdade — que é o estado gigante e patrão — segue intocado. Pior do que isso: atacar o habeas corpus, por exemplo, e outras garantias da democracia só fortalece o monstro que leva à corrupção que se quer combater. Afinal, como diz Mendes, “A persecução dos criminosos sem o Estado de Direito apenas gera novos crimes.”
Por isso nos faz falta um pensamento realmente liberal: para que não se peça que o algoz colabore com a causa das vítimas.
Por Reinaldo Azevedo
Segue a íntegra do artigo do ministro.
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Em defesa do habeas corpus
Os juízes têm uma relação paradoxal com a liberdade. De um lado, são defensores da ordem: apenas a ordem escrita e fundamentada de um juiz legitima que alguém seja mantido preso (artigo 5º, LXI, da Constituição). De outro, eles são defensores da liberdade: sempre que a lei admitir a liberdade, a obrigação do juiz é assegurá-la (art. 5º, LXVI, da Constituição).
O Brasil é um país violento e corrupto. A sociedade clama por reação, ainda que simbólica, especialmente em face de crimes de sangue e corrupção. Não é surpresa que as decisões que privilegiam a ordem, determinando o encarceramento, sejam bem vistas pelo público.
Por outro lado, decisões que afirmam a liberdade são impopulares. O juiz também é um membro da sociedade e, como tal, compartilha o sentimento coletivo. Ainda assim, ao determinar a prisão, deve seguir a lei à risca, evitando encarceramento além do necessário.
Dentre outras maneiras, o sistema jurídico manifesta a preferência pela liberdade por meio da ação de habeas corpus (HC), uma via processual prevista constitucionalmente, destinada a assegurar a liberdade, podendo ser proposta por qualquer um do povo para fazer cessar uma prisão indevida.
O habeas corpus é igualmente valorado pelos tribunais, seja ele escrito pelo advogado consagrado, em papel especial timbrado, seja pelo próprio preso —ou seus parentes— em folhas de caderno.
O HC acaba sendo o meio para coibir interpretações equivocadas e mesmo abusos na prisão. Essa característica de defesa da liberdade o torna bastante impopular entre aqueles que pregam a punição desmedida, gerando reações destinadas a limitar sua utilização.
Um dos projetos de lei elaborados pelo Ministério Público Federal na campanha intitulada “Dez Medidas contra a Corrupção” buscava justamente reduzir o poder dos tribunais para conceder habeas corpus. Felizmente, restou rejeitado pela Câmara dos Deputados.
Em outra frente, discute-se a limitação do poder do Supremo Tribunal Federal de conhecer de ações de habeas corpus, por meio de uma nova interpretação da Constituição.
A inovação seria limitar os pedidos da defesa a apenas duas instâncias. Assim, contra decisões de primeira instância caberia habeas corpus ao Tribunal de Justiça e recurso ordinário ao Superior Tribunal de Justiça. O Supremo não poderia ser acionado.
Defendo que a ação de habeas corpus não pode ser limitada. O Brasil tem a terceira população carcerária do mundo, com 726.000 pessoas presas —quase o dobro do número de vagas. Cerca de 40% dos encarcerados não foram julgados em definitivo. Não vamos resolver a impunidade ou a morosidade judicial antecipando penas, muitas vezes injustamente, mas apenas criar novos problemas.
Os presídios servem como agências do crime organizado, verdadeiros escritórios de logística e de recursos humanos das organizações.
Nesse contexto, defender o habeas corpus é defender a liberdade individual, é defender a expectativa de civilidade para todos e cada um, mas também é defender a sociedade contra a propagação desenfreada do crime. A violência e a corrupção não podem ser combatidas fora da lei. A persecução dos criminosos sem o Estado de Direito apenas gera novos crimes.
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