Nesta terça, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara volta a se debruçar sobre um pacote de inconstitucionalidades para tentar acuar o Supremo. Antes que volte a esse ponto, uma digressão.
A DIGRESSÃO
Em outros tempos, alguém como Pablo Marçal não teria irrompido na política com tanta facilidade, desfaçatez, arrogância e zombaria. E por que ele o fez? Porque achou que podia. E o ponto a que chegou indica que procedeu a uma correta avaliação de riscos. Apostou que não enfrentaria contratempos -- no que lhe deram razão o Ministério Público Eleitoral e o Tribunal Regional Eleitoral em São Paulo.
Se não pretenderam ser ou parecer lenientes, devemos advertir os integrantes de tais entes: vocês fizeram um esforço danado para simular descaso, prevaricação e conivência. O sistema de Justiça depende de disposições objetivas — a existência de leis — e das subjetivas: o dever-agir.
Marçal não passou para o segundo turno por muito pouco, o que não é razão para que deixe de responder pelos crimes que cometeu, inclusive os eleitorais. Se restar impune, fará outra vez. E outros incidirão nas mesmas práticas. É bom que não nos esqueçamos: ainda que derrotado no primeiro turno, ele é um vitorioso no jogo ao qual se dedica. Todos vimos, nesta segunda, Ricardo Nunes — a quem o buliçoso rapaz apelidou "Bananinha", prometendo que se mobilizaria para mandá-lo para a cadeia — a pedir o seu apoio, deixando claro que o perdoava por seus erros. Nunes perdoe quem quiser. O Ministério Público e a Justiça têm de fazer o que lhes demanda a Constituição.
Ou é isso, ou, então, vamos começar a brincar de pôr a cabeça na forca. Já sabemos que, atrás de um Jair Bolsonaro, vem um Pablo Marçal. E se pode presumir o que sucederia a Marçal se um epígono julgar que o mestre foi bem-sucedido na trapaça.
Há que se ter a vergonha na cara de fazer valer a lei.
Fim da digressão.
DE VOLTA AO PONTO
Afastei-me um tanto do objeto do texto para iluminar a questão. Comecei a minha digressão afirmando que, "em outros tempos", alguém como Pablo Marçal não teria tamanha ousadia. E que dias são estes, propensos a tal aberração?
São aqueles em que membros da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara — a começar de sua presidente, Caroline de Toni (PL-SC) — defendem um projeto de lei de anistia para os golpistas que, se aprovado for, será inédito para a história das anistias.
O texto original é do hoje ex-deputado Major Vitor Hugo (PL-GO). Anistiava os que cometeram crimes ligados às eleições a partir de 30 de outubro, quando tiveram início as obstruções de estradas. Nas mãos do relator, Rodrigo Valadares (União-SE), transformou-se numa peça ainda mais absurda: a anistia se estenderia aos crimes de 8 de janeiro de 2023 e posteriores, desde que relacionados àquela movimentação política pós-resultado das urnas. E também seriam beneficiados quantos vierem a delinquir até a promulgação da lei.
É evidente que se trata de um lixo inconstitucional. Se aprovado for pelo Congresso, será mandado para o lixo pelo Supremo. Vejam aí: entenderam como Marçal não chega a ser um ET no ambiente político em curso? Ele, é verdade, inova um tanto nos métodos, com seus truques baratos — e muitos, infelizmente, seduzem os incautos — da tal da "economia da atenção". Mas, em essência, é uma personagem que pertence a essa caterva que compõem parte do Congresso.
A lista de propostas que mira o tribunal é grande. Ao Globo, a tal Caroline não se vexa:
"Vamos votar o projeto da anistia e o pacote anti-STF na CCJ até o final do ano, independentemente de aprovar ou não, e que vença quem tiver mais votos."
Perceberam? A presidente da CCJ fala de "pacote anti-STF" sem nenhum constrangimento, o que corresponderia a um ministro do tribunal conceder uma entrevista afirmando: "Estamos aqui com um pacote anti-Congresso; que vença quem tiver mais votos".
Tenho certa nostalgia do tempo em que esse tipo de pensamento virava, sim, objeto de notícia porque notícia é, mas jamais seria normalizado na imprensa como, sei lá, "uma das vozes da nossa pluralidade", a exemplo do que têm feito alguns por aí. Seria barrado no mata-burro.
ENCERRO
Marçal, que tem de ser contido, junto com outros criminosos, pode ser visto como emblema de um tempo em que parte considerável do pensamento que se quis conservador um dia -- e o conservadorismo só é compreensível numa democracia se conservar instituições -- se transformou numa raivosa ladainha reacionária contra quem teve e tem a coragem de acionar as defesas do estado de direito para conter o golpismo. Não por acaso, Moraes foi o único, dada a palavrosa inércia geral, a realmente enquadrar Marçal. Enquadrar em quê? Na lei, que estava à disposição dos que não prevaricam.
Aprovem a anistia! Não vejo a hora de aplaudir o STF diante da declaração de sua inconstitucionalidade. Se e quando acontecer, demonstrarei que eu estava certo sobre a caterva. E também sobre o tribunal.
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