quarta-feira, 13 de julho de 2022

Bolsonaro convida irmãos do petista Marcelo a sapatear e a cuspir na cova



Não bastava a Jair Bolsonaro ter se negado a emprestar solidariedade à mulher e aos filhos de Marcelo Arruda, o dirigente petista assassinado em Foz de Iguaçu, no sábado à noite, na festa do seu aniversário, pelo militante bolsonarista Jorge José da Rocha Guaranho.

Não bastava a Jair Bolsonaro ter procurado acusar as próprias esquerdas por um ato tresloucado praticado por um aliado seu.
Não bastava a Jair Bolsonaro ter feito a apologia das armas no dia seguinte à morte de Arruda, a exemplo, diga-se, de Eduardo Bolsonaro, seu filho, que publicou nas redes sociais, ainda no domingo, a imagem de um bolo, em homenagem ao próprio natalício, com um 38 feito de glacê.

Não bastava a Jair Bolsonaro jamais ter pronunciado o nome da vítima. Marcelo virou apenas "o cara que morreu".

Não há asco o bastante para o asqueroso.

Não há abjeção compatível com o abjeto.

Não há repulsa à baixura do repulsivo.

O presidente da República que temos brutaliza até o que a civilização nos ensinou ser o repugnante, o nojento, o nauseabundo, o revoltante, o baixo, o imoral, o indecente, o indecoroso. Ainda que se tomem emprestadas ao diabo todas as palavras com que designá-lo — é o campeão de sinônimos do dicionário —, não se terá ido o suficiente às profundezas para definir tanta vileza.

Com o auxílio do deputado Otoni de Paula (MDB-RJ), Bolsonaro fez nesta terça uma chamada de vídeo Zé Arruda e Luís Arruda, irmãos de Marcelo. Ambos são eleitores do presidente e não estavam presentes à festa, que tinha como temas o PT e o ex-presidente Lula. Marcelo era tesoureiro do partido em Foz do Iguaçu.

Reitere-se: Bolsonaro não falou com Pâmela Suellen Silva, viúva de Marcelo -- que se arriscou, diga-se, para tentar salvar o marido e os convidados -- ou com Leonardo, um dos filhos da vítima, que tem 26 anos. Não. Ele foi buscar entre os familiares aqueles que são seus eleitores, num esforço, como de hábito, de culpar a vítima pela própria tragédia. Disse:
"A gente sabe qual foi o lado que começou, mas fica essa imputação em cima de mim, como se eu fosse o responsável pelo que aconteceu, dados os meus pronunciamentos. Foi politizado pela grande mídia. A gente não concorda com esse tipo de comportamento. Se porventura me apoiem, peço que apoiem o outro lado. Eu sou vítima, eu levei uma facada".

Sim, foi assim mesmo. O senhor presidente da República telefonou a dois familiares do morto para tentar demonstrar que a verdadeira vítima não era aquele a quem chama "o cara", mas ele próprio, Bolsonaro. Afinal, levou uma facada em 2018, como se tal episódio tivesse alguma relação com a tragédia havida no sábado.

Não ficou só nisso, não. Convidou a dupla a visitá-lo no Palácio do Planalto, ocasião, então, em que dariam uma coletiva para "mostrar o que aconteceu, mesmo que a imprensa tenha o grande objetivo de desgastar o governo".

NÃO SE IMPORTA
Eis aí. Bolsonaro deixa claro aos próprios irmãos de Marcelo, que toma gente como sua -- e, pois, supõe que compartilhem de seus valores -- que pouco se lixa para a vítima. Está mesmo preocupado é com a reputação do seu governo. Vamos ver se a dupla está disposta a sapatear sobre a cova do irmão. Consta que farão uma consulta a outros familiares para saber se atenderão ao convite do presidente, mas os indícios não são bons.

Um deles chegou a dizer que "a família não admite" que a esquerda fique "usando o caso para fazer politicagem", o que é, em si, absurdo. Quem diz uma estupidez desse tamanho não se dá por satisfeito com a morte do irmão: quer também destruir a sua memória e mudar a sua história. Marcelo era dirigente municipal do PT. Seu apreço pelo partido era tal que optou por fazer uma festa temática. Acusar a esquerda de "fazer politicagem" corresponde a tentar roubar ao morto a sua própria identidade. Como não conseguiram se impor ao irmão quando este estava vivo, tentam fazê-lo quando já não pode mais argumentar ou se defender.

Outro tentou justificar a presença de esquerdistas no velório de Marcelo, quase pedindo desculpas, como se o irmão não tivesse morrido justamente por ser de esquerda. Afirmou:
"A gente sabe que o ambiente onde o meu irmão foi velado é um ambiente totalmente esquerdista, tava lá, apareceu lá a Gleisi Hoffmann (presidente do PT), que eu tenho pavor, mas como o meu irmão é petista, e ela estava lá por ele, não vou me pronunciar, não vou falar nada."

Não se negue a Bolsonaro o dom notável de extrair de cada um o que tem de pior. Marcelo estava com 50 anos e tinha feito as suas próprias escolhas. Instigados pelo presidente, seus irmãos o tratam como vítima de molestamento ideológico feito por pessoas más. Não! Era ele próprio um dirigente do PT. O que fazem nessa conversa com Bolsonaro, aí sim, é tripudiar sobre o cadáver do irmão. A propósito: os dois já correram algum risco por serem bolsonaristas? Um bolsonarista matou seu irmão porque este era petista.

Pamela ficou surpresa ao ser informada sobre a ligação: "Absurdo! Eu não sabia". Leonardo, um dos filhos, evidencia o incômodo óbvio de se tentar atribuir também a seu pai o confronto que resultou em morte, a exemplo do que fez Bolsonaro ontem ao conversar com seus seguidores:
"O ódio não está em mim, na nossa família. A gente estava comemorando. Não foi a gente que procurou isso. Não foi a gente que matou. A gente não odeia ninguém".

Ocorre que eles odeiam. A cada vez que simulam uma arma com a mão, imaginam um adversário ideológico como alvo. Aí um entre os mais afoitos pega uma arma de verdade e mata uma pessoa de verdade.

Marcelo morreu, mas viverá por muito tempo porque personagem de destaque, ainda que tragicamente involuntária, da história de resistência à barbárie destes tempos. Bolsonaro convida seus dois irmãos para que morram em vida. O bolsonarismo passará, e eles restarão como zumbis se cederem ao convite indigno.

Por Reinaldo Azevedo

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