domingo, 8 de março de 2020

No Brasil, ser mulher nos transforma em alvo de ataques


Resultado de imagem para Patrícia Campos Mello

Tem gente que vê graça em linchamento misógino; o que achariam se a piada fosse com a filha deles?
Como diz o clichê, uma imagem vale mais do que mil palavras.

Quanto valerá uma foto em que uma mulher aparece pelada, de pernas abertas, em cima de uma pilha de notas de dólares, chamada de piranha? E uma em que o rosto dessa mesma mulher aparece com a legenda: “Folha da Puta — tudo por um furo, você quer o meu? Patrícia, Prostituta da Folha de S.Paulo — troco sexo por informações sobre Bolsonaro”? E outra em que essa mulher —sempre a mesma— aparece com a frase: “Ofereço o cuzinho em troca de informação sobre o governo Bozo”?

Peço desculpas pelas palavras grosseiras, mas estou apenas descrevendo alguns dos incontáveis memes que eu recebo todos os dias, que são compartilhados por milhares de pessoas pelo WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram. É o meu rosto e o meu nome que estão nesses memes.

Tem gente que acha isso engraçado. Como disse um blogueiro governista, isso não é um ataque a jornalistas, é apenas uma maneira de tirar sarro, “que falta de senso de humor”. Um humorista que imita o presidente Jair Bolsonaro também se matou de rir e ainda debochou das reações, imitando choradeira.

Será que esse pessoal acharia graça se essa “piada” fosse com a irmã, a mulher ou a filha deles?

Este linchamento virtual começou depois que Hans River do Rio Nascimento, ex-funcionário da agência de marketing Yacows, fez um depoimento à CPMI das Fake News.

Hans foi entrevistado para a reportagem “Fraude com CPF viabilizou disparo de mensagens de WhatsApp na eleição”, publicada pela Folha em 2 de dezembro de 2018 e escrita pelo repórter Artur Rodrigues e por mim. A reportagem, baseada em documentos públicos da Justiça do Trabalho, fotos, planilha e em relatos de Hans mostrou que uma rede de empresas, entre elas a Yacows, recorreu ao uso fraudulento de nome e CPFs de idosos para registrar chips de celular e garantir o disparo de lotes de mensagens em benefício de políticos.

Em seu depoimento à CPMI, Hans contou diversas mentiras, entre elas a de que eu teria tentado obter informação “a troco de sexo”.

Algumas horas após o depoimento, publicamos reportagem que, com provas concretas, desmentiu Hans de forma cabal. As entrevistas com ele haviam sido gravadas, com a sua permissão; as fotos e a planilha que ele mandou tinham sido salvas, assim como todas as trocas de mensagem.

Essas provas revelavam que o depoente havia mentido à CPMI em diversos pontos. Tudo isso foi anexado ao processo que estou movendo contra ele.

Nada disso importou. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, tratou de espalhar as calúnias rapidamente.

Fez vídeo ecoando a mentira e distribuiu em suas redes sociais. Reproduziu as ofensas de Hans em diversos comentários em sua conta do Twitter, que tem 1,8 milhão de seguidores. Fez questão de subir na tribuna da Câmara dos Deputados e dizer, enquanto era filmado: “Eu não duvido que a senhora Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o senhor Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro”.

Sete dias depois, quando ainda mais provas haviam sido publicadas, demonstrando as mentiras da testemunha, o presidente Bolsonaro levantou o assunto, sem nem sequer ser indagado, em uma das coletivas improvisadas que dá na frente do Palácio da Alvorada.

“Ela [repórter] queria um furo. Ela queria dar o furo [risos dele e de apoiadores]”, afirmou, diante de um grupo de simpatizantes. Após uma pausa durante os risos, Bolsonaro concluiu a frase: “A qualquer preço contra mim”.

Além dos inúmeros memes de cunho pornográfico, recebi mensagens agressivas.

“Você tava querendo dar a buceta para ver o notebook do cara kkkkkkk então você chupa piroca por fontes?”, dizia um usuário do Facebook chamado Bruno Pires, que, segundo sua conta na rede social, estudou direito na Universidade de Rio Verde.

“Puta do caralho, por que você não libera seus comentários? Quem tem cu, tem medo”, disse um Luciano Marrtins, de Santo André, em mensagem enviada por Facebook.

Até um legislador, eleito pelo povo brasileiro, sentiu-se autorizado para ofender. “Se você acha que está na pior, lembre-se da jornalista da Folha de SP que oferece SEXO em troca de alguma matéria para prejudicar Jair Bolsonaro. Depois de hoje, vai (sic) chover falsos informantes para cima desta senhora. Força, coragem e dedicação Patrícia. Você vai precisar”, disse em sua conta oficial do Twitter o deputado André Fernandes, do PSL do Ceará. O tuíte está lá até hoje, na conta do deputado.

O deputado foi recebido em um almoço com o presidente Bolsonaro uma semana depois e publicou na rede social uma foto ao lado do mandatário, os dois sorridentes.

Com a declaração do presidente, os ataques pioraram. “E aí, putinha da Folha, kkkkk, cuidado ao oferecer o furico”, disse o usuário matheus.schuler, no Instagram.

Em palestras e aulas, muitas pessoas me perguntam quais as dificuldades que uma mulher jornalista enfrenta para cobrir conflitos ou guerras ao redor do mundo.

Eu costumava responder que, na nossa profissão, ser mulher mais ajuda do que atrapalha. Nós temos o privilégio de poder conversar livremente com outras mulheres, entrar em suas casas, ter um pouco mais de contato com o dia a dia delas, mesmo em países mais conservadores —ao contrário de jornalistas homens.

Acredito que, em muitas das reportagens que tive a oportunidade de fazer —desde a cobertura de conflitos na Síria, Líbia, Iraque e Afeganistão até a epidemia de ebola em Serra Leoa, com temas difíceis como estupro e agressões contra refugiados—, o fato de ser mulher foi uma vantagem. Acho que me ajudou a pelo menos tentar ter mais empatia e me colocar no lugar de todas essas pessoas que tentam sobreviver em circunstâncias muito difíceis.

No Brasil, longe desses conflitos, estamos descobrindo que ser mulher nos transforma em alvos. As agressões que sofremos têm sempre uma conotação preconceituosa: dizem que as jornalistas são feias, gordas, velhas ou prostitutas; expõem seus filhos, maridos ou pais.

Eu não fui a primeira e não serei a última mulher a sofrer ataques misóginos simplesmente por fazer jornalismo no Brasil.

A repórter Talita Fernandes, da Folha, já teve que ouvir o atual presidente dizer a ela “cala a boca” durante uma entrevista coletiva. Ele também perguntou a Talita se ela era casada e já disse que ela fazia perguntas idiotas. Ele frequentemente manda repórteres —nesse caso homens e mulheres— tomarem vergonha na cara.

Mais recentemente, a jornalista Vera Magalhães, que já sofria ataques misóginos por seu trabalho, recebeu inúmeras agressões verbais de apoiadores e aliados de Bolsonaro após publicar uma reportagem sobre o protesto marcado para 15 de março. Além disso, Vera, do jornal O Estado de S. Paulo e da TV Cultura, teve sua família exposta.

A repórter Marina Dias, também da Folha, foi alvo de declarações agressivas e pejorativas nas redes sociais e se viu obrigada a fechar temporariamente sua conta no Twitter. Marina escreveu, em parceria com Rubens Valente, reportagem durante a campanha de 2018, mas só ela foi atacada. A mesma Marina ouviu do presidente Bolsonaro, em uma coletiva em Dallas, que deveria entrar de novo “em uma faculdade que presta e fazer bom jornalismo”.

Em março de 2019, a jornalista Constança Rezende, atualmente colunista do UOL, foi alvo de uma pegadinha, seguida de uma notícia falsa disseminada pelo próprio presidente no Twitter. Na rede social, Bolsonaro divulgou uma informação falsa do blog Terça Livre.

O texto apócrifo dizia falsamente que Constança, na época repórter do jornal O Estado de S. Paulo, queria arruinar Flávio Bolsonaro e buscava o impeachment do presidente. Bolsonaro também expôs a vida pessoal, marcando seu pai na publicação, o também jornalista Chico Otávio, do jornal O Globo.

A jornalista Míriam Leitão é alvo constante do presidente e seus apoiadores. Bolsonaro já disse que Míriam mentiu sobre ter sido torturada e zombou sobre os métodos de tortura: “coitada da cobra”. A jornalista foi presa e torturada, grávida, aos 19 anos, quando estava detida no 38º Batalhão de Infantaria em Vitória. Ela também sofre frequentemente ataques misóginos nas redes.

As agressões não se restringem à grande mídia, nem às capitais. Quando um ataque vem do topo da hierarquia, ele funciona como um sinal verde. Há casos de misoginia em Câmaras de Vereadores em cidades pequenas e com jornalistas de veículos independentes.

Mas também há forte reação da sociedade. Pessoas de todos os cantos do espectro ideológico, da direita à esquerda, associações cristãs, judaicas, de advogados, de mulheres empresárias, atrizes e artistas, estudantes, gente da periferia e dos bairros ricos —muitos se juntaram para repudiar o desrespeito às mulheres.

Lembro-me especialmente da mensagem que a Maria Lucimar me mandou pelo Facebook, no dia 25 de fevereiro.

“Patrícia, sou uma empregada doméstica, que formou um filho na universidade com muito sacrifício, por isso não fiz uma universidade. Mas sou muito bem informada e me indignei com as ofensas contra você. Falei pro meu filho: gostaria de colocar ela no colo. Queria ser sua amiga virtual, você me representa, seu trabalho é maravilhoso.” Obrigada, Lucimar, uma honra ser sua amiga.

Jornalista não é notícia. Queremos nos ater ao que é importante: apurar reportagens, investigar, fazer jornalismo. As críticas são sempre bem-vindas. Mas que sejam críticas ao nosso trabalho, e não ataques ou deboche sobre nossa aparência, nossas famílias, nem tentativas de nos expor ao escárnio nas redes sociais.

E tenho um recado para o usuário Marcelo.zarife, que me mandou a seguinte mensagem no Instagram: “Trocando a piriquita por informações falsas! Todo o castigo para você é pouco!!! Uma pena que seus filhos pagarão pelos seus erros, pois serão lembrados diariamente que a mamãezinha deles não passa de uma prostituta da baixo calão”.

Marcelo, com todo respeito que você não teve por mim, vou discordar. Ao contrário de você, torço muito para que nem eu nem nenhuma outra mãe seja alvo desse tipo de campanha difamatória.

Por Patrícia Campos Mello

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